domingo, 5 de junho de 2011

Dependência

Na última postagem eu falei que muitas pessoas são intolerantes com membros de outras crenças, mas ainda resta a pergunta: por quê? Este fenômeno é muito anormal e até doentio, é possível vê-lo em mesmo em pessoas inteligentes, de caráter, mas não quando outro assunto que não envolva religião é posto à mesa. Cada crença faz aos fiéis uma propaganda negativa de tudo o que se opõe a ela, criando neles o medo de sequer conhecer, investigar a afirmação ou de aceitar evidências contrárias a esta propaganda, como se o mundo todo fosse uma conspiração maligna tentando convertê-los para o mal. Agora, Isso não explica exatamente porque os fiéis aceitam esta propaganda.

Afinal de contas, por que os fiéis engolem isto sem contestar? E depois de engolir, por que eles fecham os olhos e os ouvidos para tudo o que aponta que a visão de mundo deles está errada? Isso não acontece somente quando se trata de preconceito religioso, mas também em relação às evidências científicas, históricas, e assim por diante. Até mesmo as ideias mais óbvias e claras são rejeitadas como se fosse essencial que eles não percam esta visão de mundo. Em outras palavras, os crentes sentem-se como se o propósito da vida deles dependesse da crença. É bem fácil ver que existe esta dependência pois a própria fé afirma que o fiel não pode abandoná-la. Esta é a afirmação mais bem enterrada dentro da cabeça do fiel, é quase impossível desenterrá-la, uma vez que qualquer tentativa de desenterrá-la é vista com maus olhos, como parte da conspiração mundial contra a fé, ideia frequentemente associada com a noção de que o mentor desta conspiração é o próprio demônio.

Isso não é tudo. Quando um crente depara-se com um descrente e este, de alguma forma, se torne uma ameaça à crença daquele, a primeira reação é a negação. Esta, ao falhar, dá lugar à raiva, que leva o crente a demonizar o descrente. É quase como cometer uma falta num jogo de futebol: se o seu conhecimento sobre o assunto é falho, se a lógica não parece estar ao seu lado, a solução é a agressão. Por exemplo, ainda que Jesus (que deveria, na visão dos cristãos, ser o juiz do cristianismo) disse explicitamente para não julgar, é frequente que, nestas situações de ameaça, os cristãos joguem tudo para o ar e digam, de maneira explícita ou implícita, a frase tão bem conhecida entre não-cristãos: você vai para o inferno! Esta frase, infelizmente, até virou clichê.

É engraçado ver muitas vezes ver pessoas defendendo suas filosofias de vida quando estas estão ameaçadas. Até a fisionomia muda, é visível o desespero, o medo de que a outra pessoa coloque na discussão algo que elas não sejam capazes de responder. Quando alguém entra neste estado de respostas automáticas, a lógica e o raciocínio são deixados de lado. O sorriso forçado, o sangue por todo o rosto, o desconforto, a voz. Não é de se estranhar que as pessoas evitam falar de religião fora da igreja, afinal, qualquer tentativa nesse sentido é seguida dessa experiência desconfortável. Isso é desviar-se do problema. Mas qual é o mal de não poder responder, de estar errado? Por que esse compromisso de estar certo? A resposta novamente é a dependência.

Imagine uma discussão entre marido e mulher sobre qual cor pintar uma casa. Ambos concordam que a casa deve ser pintada com a cor mais bonita, mas um prefere o azul e a outra, o amarelo. Como é possível defender que o azul é uma cor mais bela que o amarelo, ou vice-versa? Não é possível, é uma questão de gosto, mas às vezes a discussão procede como se bonito ou feio fosse uma característica absoluta, invariante de pessoa para pessoa, e a discussão se torna puramente teórica, pois é impossível argumentar que uma cor é inerentemente mais bela que a outra. Se o exemplo não ficou claro o bastante, suponha que ambos, na verdade, concordam que a casa deve ser pintada na cor que Deus escolheu. Mais uma vez, seria impossível descobrir qual das duas cores seria a preferida. O marido diria que orou e ouviu a voz de Deus, e este lhe pediu que pintasse a casa de azul. Mas a mulher responderia que também orou, mas que Deus lhe disse para pintar a casa de amarelo.

É muito fácil entender porque uma argumentação deste tipo não acaba bem. As afirmações costumam ser propositadamente impossíveis de se verificar, poucos têm coragem para fazer afirmações imediatamente verificáveis. Os que as fazem no fim decepcionam-se e aprendem a não fazê-las novamente, pois elas falham, então é mais astuto fazer afirmações infalsificáveis. Esta desonestidade assemelha-se a cavar uma falta, pois trata-se de criar uma situação falsa que mostre que você está certo. Se o outro não cair nesta falta, o próximo passo é ofender pessoalmente aquele que insiste que você está errado. Nem o marido e nem a mulher teriam coragem para dizer: desça três quadras por esta rua, vire à esquerda, depois à direita e você verá um carro de tal cor parado ao lado de um telefone público, este é o sinal de que Deus quer que nós pintemos a casa dessa cor. Afirmar isso seria suicídio na discussão, então o caminho escolhido acaba sendo ofender o outro por ter mal gosto ou não saber nada a respeito de cores ou de como pintar uma casa.

Na visão de uma pessoa profundamente religiosa, um apóstata ou alguém que “nega Deus em seu coração” (uma visão completamente errônea do que significa ser ateu) não pode ser, de maneira alguma, uma boa pessoa. Veja, por exemplo, como o Datena criticou os ateus em seu programa de televisão, chamando-os de bandidos, criminosos (veja uma resposta). Assim, a primeira ideia que um “bom” cristão tem ao conversar com uma pessoa deste tipo é imaginar que ela é secretamente maligna, ou então que ela nunca teve a oportunidade de conhecer a “religião correta”. Entretanto, ao lidar com ateus reais - e não os ateus teóricos, aquelas pinturas diabolizadas ou dignas de pena cujos autores são os líderes religiosos - esta visão começa a cair por terra, a ser falseada, o que faz com que apareçam a negação seguida da raiva. O propósito desta raiva é encobrir a verdade, negando, a si mesmo, a própria existência daquele ateu real.

Não é à toa que, por exemplo, o espiritismo - por ser uma religião mais moderna - “escolheu” não pintar os não-espíritas como malignos. Isso, para mim, é bem curioso. Aliás, está aí outra coisa que é injustamente vestida como estupidez: a curiosidade. Não foi ela que matou o pobre do gato, foi a falta de cautela.

Isso tudo mostra que os crentes não só dependem da religião como também se sentem ameaçados pela verdade, ou seja, pelas experiências com o mundo real. Mas o mundo não perdoa, a verdade não se curva. O carro parado ao lado do telefone não vai mudar de cor porque isto lhe é conveniente, uma pedra não se move apenas a partir da crença de que ela vai se mover e o ateu não vai, do nada, mostrar os chifres inexistentes que estão escondidos debaixo do cabelo. Entretanto, por mais que alguém queira acreditar que a verdade não seja verdade, ela continua sendo. O desejo de que não exista evidências contrárias a uma falsa visão de mundo não faz com que elas desapareçam. É desapontador ver como as pessoas, ao invés de dar atenção a estas evidências, tentam apagá-las ou evitar que elas sejam levadas a público e fingem que elas não existem. Quem está sendo enganado com isso? Se a mera existência de um apóstata que não demonstre ser um demônio encarnado contraria o que você acredita, não está mais do que na hora de rever os seus conceitos? Se sua teoria está realmente correta, qual mal há em testá-la? Não é hora de perder esse medo de encarar a verdade e substituí-lo por curiosidade?

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...