segunda-feira, 30 de maio de 2011

Intolerância

Ao se deparar com um cético, diz-se:
- Cuidado! Você recebeu a sua fé desde criança, negar a sua fé desta forma é um pecado contra o Espírito Santo que não pode ser perdoado pela redenção de Cristo!
- Você está dizendo que eu vou para o inferno por duvidar?
- Não, eu não disse que você vai para o inferno.

Mas, veja, de acordo com a argumentação, se eu negar a minha fé, ou seja, duvidar, eu vou cometer um pecado que não pode ser perdoado pela redenção de Cristo. Oras, segundo o cristianismo, se seus pecados não forem redimidos por Cristo, você não ser perdoado por Deus. Se eu não vou ser perdoado, não é possível que eu vá para o paraíso, pois só entra no céu quem é perdoado. Então, por esta lógica se eu negar a minha fé, eu vou para o inferno.

O problema é que o objetivo da argumentação não é ser coerente ou usar a lógica, mas infligir medo. Quando a lógica é clara em apontar a malícia do argumento, a estratégia utilizada é contornar, suavizando o significado das palavras de maneira mínima, sem mudar o conteúdo e, principalmente, sem retirar o motivo para o medo e a obediência. Por exemplo, para suavizar a mensagem acima e tirar-lhe o impacto obviamente desumano, pode-se dizer que Deus pode ter pena de quem não crê. É assim que se cozinha uma rã em água quente: esquentando aos poucos, de forma suave. Veja que isso não remove o problema, a mensagem ainda é desumana, pois isso não muda o fato de que, por padrão, quem não crê vai para o inferno (com a exceção se Deus tiver piedade da sua pobre alma). Esta ideia apenas acrescenta uma exceção à regra, mas não retira a malícia nela existente. Aliás, a malícia aumenta com a noção de que quem não crê é digno de pena.

Esse tipo de conversa pode tomar muitas formas. Você está agindo por conveniência, está com medo de admitir que Deus existe, está negando a salvação de Cristo, o amor divino... São formas de infligir medo para controlar as pessoas a permanecer na credulidade, na obediência, como se os crentes se sentissem ameaçados pela mera existência de um descrente. Mas não se diz: você está pensando, agindo com prudência, com cautela, aprendendo, pesquisando, procurando...

Perceba, porém, que esta intolerância com a descrença com as quais tantos cristãos retratam a Deus reflete a intolerância que eles mesmos possuem. Esta intolerância é, na verdade, a base da maior parte das formas de cristianismo. Ao atribuir estas características a Deus, eles adquirem a falsa segurança de que a intolerância está justificada pelo próprio senhor do universo, de forma que eles não precisem assumir a responsabilidade por esta má atitude. Imagine como isso soaria aos ouvidos de Deus: pintá-lo de mau para justificar a sua própria maldade. Esta articulação desprezível já foi utilizada no passado para apoiar atitudes terríveis como condenação de hereges, feiticeiros, judeus e muçulmanos, muitas vezes baseadas em confissões claramente falsas à base de tortura, além de escravidão e guerras santas: era nada menos que a vontade divina, obrigação dos cristãos. Infelizmente, ainda hoje existe esta linha de pensamento.

Ao infligir medo, o religioso nega ao outro o direito à liberdade de pensamento e opinião, às vezes não usando apenas agressões verbais, mas também físicas. É bem conhecido que muitos pais chegam a deserdar filhos apóstatas, homossexuais, ou que simplesmente não pertencem mais à religião dos pais. Quando não chegam a tal ponto, demonstram desespero, nervosismo, aflição, tentam negociar de todo jeito uma rendição, um retorno. A situação não é a mesma que quando o filho escolhe outro partido político ou opina de forma contrária em outra questão. A reação é bem mais similar à descoberta de que o filho é um criminoso.

Estranhamente, a partir do momento que o adolescente revela a sua “rebeldia” religiosa, o caráter recebe importância muito maior que antes do tal momento. A régua com que se mede alguém de outro time tem o dobro do tamanho que a régua com que se mede alguém do seu próprio time; assim, seus jogadores lhe parecerão mais altos. Aí está, na verdade, mais uma coisa que contradiz a mensagem de Cristo: a quem muito é dado, muito será cobrado. Isto é, supondo que a fé é algo grandioso, como os cristãos costumam afirmar, embora isso não seja verdade, mas as pessoas deveriam ter o cuidado de medir todos com a mesma medida.

Quando o jogo vira e os atacantes são os descrentes, os crentes acabam se vitimizando, acusam os críticos de não saberem aceitar as diferenças e de estarem enfurecidos, quando, na verdade, são eles que estão enfurecidos por serem criticados, uma vez que não sabem aceitar as diferenças. Afinal, aceitar as diferenças é dar ao outro a oportunidade de discordar e apresentar seus argumentos.

Muitos afirmam não ter preconceitos contra pessoas de outras crenças, mas os têm, afirmando, com toda a segurança, que o fato de discordar da forma como os outros pensam não é o mesmo que maltratá-los ou discriminá-los por isso, ao mesmo tempo que evitam entrar nos grupos destes outros, ouvem com os ouvidos tampados e prontos a dar milhares de respostas ensaiadas, fazendo questão de acabar, a qualquer custo, com qualquer argumentação desfavorável, mesmo que apenas na aparência, muitas vezes jogando ao ridículo discursador e discurso, esmigalhando qualquer afirmação ligeiramente controversa, sem dar importância à lógica ou à coesão, sem jogar pelas regras: não há problema em levar cartão vermelho, o que importa é vencer.

Levando para um caso mais específico, muitos cristãos frequentemente criticam a nós, ateus, de não crer para não sentirmos culpa pelos próprios erros, de imorais, sem valores, sem ética, sem respeito à liberdade religiosa, de não usarmos a nossa cabeça, de termos o coração endurecido, entre outras coisas. Dizem que nós cremos, mas escondemos o fato por não querer aceitá-lo. Aliás, a maioria dos que fazem tais afirmações nem sequer conhecem um ateu pessoalmente. Entretanto, não temos direito de resposta, pois qualquer resposta, mesmo que inocente, é vista como falta de respeito, insulto aos crentes e a Deus. Isso é essencialmente o mesmo que considerar o cristianismo como uma casta superior, acima de críticas, de questionamento, mas não o ateísmo, que deve ser a escória da sociedade; opinar de forma contrária ao cristianismo é imoral, mas não criticar o ateísmo.

Isto, é claro, é apenas um exemplo: não vale para todos os cristãos e nem somente para os cristãos.

Talvez os sinais mais evidentes de dependência religiosa sejam estes: a incapacidade de ter relacionamentos saudáveis e produtivos com alguém que não é vítima da mesma dependência, de discordar, discutir e repensar seus conceitos sem medo de estar errado, a insegurança na sua própria crença que é visível quando é apresentada uma ideia contrária razoável. Mas nós somos todos seres humanos, com semelhanças o bastante para que possamos compreender uns aos outros, entender as escolhas, as conquistas, as frustrações, sentir compaixão e compartilhar a nossa felicidade, mas também temos em nosso DNA diferenças o bastante para que seja preservada a beleza do mistério e do aprendizado na nossa relação uns com os outros. Não nascemos para sermos um exército de clones de forma a acreditarmos nos mesmos ideais e defendermos a mesma opinião, mas temos, ao menos a maioria de nós, a capacidade inata de conviver de forma harmoniosa e alcançar ideais conjuntos.

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