Existem muitas ideias que se espalham entre os ateus mais convictos, mais religiosos. E digo religiosos por um motivo bem simples: ateísmo, mesmo que tecnicamente não seja uma religião, possui várias das características comuns às religiões. Uma delas é a existência de um conjunto de fanáticos, que se tornam cegos e disseminam ódio e desrespeito às pessoas crentes sob o pretexto de que "crenças não merecem respeito", fãs de vitimização, de fazerem-se de coitados e perseguidos, quando ao mesmo tempo não colocam limites à própria raiva e recusam-se a tentar compreender a cabeça dos religiosos sem pré-julgá-los.
Ateísmo, por definição, é simplesmente ausência de crença em Deus. Por esta definição, uma pessoa qualquer, ou crê em Deus, ou é ateia. Claro, definição é definição, mas será esta a definição usada na prática, socialmente? Comparemos com cristianismo. O
dicionário Priberam dá duas possíveis definições para a palavra: "religião de Cristo" ou "doutrina de Cristo". Seria justo dizer que todas as religiões denominadas cristãs podem ser ditas "de Cristo"? Teria o nazareno de milênios atrás fundado cada uma delas? Seria correto dizer que elas seguem a doutrina "de Cristo"? Ou seria mais correto dizer que elas seguem uma doutrina cujo centro e objeto de adoração é uma divindade de nome Jesus Cristo? E digo "uma divindade" porque as religião cristã dão características bem diferentes a Jesus, não se pode dizer "o Jesus Cristo". E fica impossível associar cada uma dessas divindades a um homem que viveu dois mil anos atrás.
Resumindo, a definição de cristianismo está associada ao homem Jesus Cristo, mas o significado prático desta palavra não está. O detalhe é que essa associação é feita na mente das pessoas que se denominam cristãs. Alguém pode não seguir nenhuma religião e denominar-se cristão. Oras, o que define alguém como cristão não é a definição da palavra, mas o quanto as crenças e características deste indivíduo se encaixam naquelas esperadas de um cristão (adorar a Jesus, ir à igreja, professar a fé em Deus...). Aliás, esta é a definição utilizada na prática, não apenas para esta corrente filosófica, mas também para qualquer outra. Pela definição do dicionário é impossível determinar quem é cristão e quem não é.
E por que ateísmo seria diferente?
Oras, ateísmo, na prática, já fugiu à sua definição há tempos. Muitos não professam uma crença em divindade alguma sem se auto-denominarem ateus. Entre os ateus, um adolescente rebelde que diz não acreditar em Deus não é um ateu "de verdade". Muitos deles consideram apenas um ateu "de verdade" aquele que busca informações a respeito das religiões, da crença em um deus, professando abertamente sua ausência de crença, que não acredita em informações aleatórias sem evidências, entre outras coisas. Já ouvi muitos ateus dizerem o quanto é óbvio que marxismo é uma religião. Oras, eu desconheço qualquer definição da palavra religião que classifique marxismo como tal e que não inclua o próprio ateísmo.
Assim, o que, na prática, classifica um ateu não é simplesmente a sua crença ou descrença em divindades. A palavra ateísmo está tão carregada de características que muitas pessoas, apesar de, por definição, serem ateias, negam-se a declararem-se como tais, não pelo medo da repressão ou preconceito, mas sim por causa de um padrão de comportamento que os ateus (sem perceber) esperariam destes indivíduos.
Afirmar a descrença em divindades na sociedade atual não é uma mera constatação de uma ausência de crença, mas um cartão de entrada à ideologia denominada ateísmo. Sendo assim, ateísmo está mais próximo de "crença na negativa" (ainda que não seja crença absoluta) do que de "descrença". Eu não tenho medo de, como ateu, ser possivelmente classificado como pertencente a uma religião; prefiro ser racional a render-me ao medo e fazer um julgamento tendencioso. Religiosidade não é o problema, nem mesmo religiosidade e excesso: não há mal em defender e viver de acordo com princípios comuns a outros. O problema é o fanatismo, é criar um muro entre si mesmo e aqueles que não têm os mesmos princípios.
Dizem que ateísmo não pode ser uma religião porque os ateus pensam diferentemente uns dos outros. Oras, não seria isso verdade em qualquer religião? Quase não há crença que seja comum a todos os cristãos, o mesmo vale para os ateus. Mas existe, sim, uma forma de pensar "média" no cristianismo, ou forma de pensar de maioria, que muitos consideram fator determinante para um indivíduo ser considerado cristão. Por exemplo, nem todos os cristãos afirmam que Jesus Cristo é ao mesmo tempo Deus e filho de Deus, mas a maioria deles não considera cristão alguém que não afirme isso.
Ateísmo também tem uma forma de pensar "média". Infelizmente, assim como no cristianismo, essa forma de pensar média é, em alguns pontos, tendenciosa e crédula. Vale notar que isso não pode ser dito de cada ateu em particular, ainda que seja muito religioso - isso varia muito. Apesar disso, há muitas ideias que se espalham rapidamente e sem questionamento pelos ateus.
Um dos exemplos pode é dado por
esta crítica ao Bule Voador. Alguém contou uma anedota no site do Bule envolvendo um óbvio estereótipo de um crente fanático, acrescentando a ela vários elementos que são, no mínimo, duvidosos. Na
matéria original, que foi removida e substituída por uma retratação, ainda pode-se ver alguns comentários demonstrando crença total na anedota, que, felizmente, não é universal, mas ainda assim preocupante.
Um conjunto de afirmações absurdas que são facilmente engolidas por ateus são aquelas apresentadas na primeira parte do documentário Zeitgeist, que "mostram" características da vida de Jesus que são comuns a várias outras divindades da antiguidade, afirmando que a vida deste homem teria sido uma invenção-conspiração do Império Romano na tentativa de criar uma religião manipuladora.
Sinto muito, caro leitor, mas, só para dar um exemplo, o número de discípulos de Horus varia muito de história para história, e vi algumas fontes afirmarem que em nenhuma delas este número era doze. Há sim, semelhanças, que fariam a maioria dos cristãos corarem de vergonha (posso citar várias semelhanças com o budismo, por exemplo), mas este documentário força a barra e força a audiência a engolir um sapo. A ideia de que o Império Romano inventou este homem nazareno é simplesmente absurda para qualquer um que tenha a menor preocupação de investigar a História a fundo.
Aliás, como é comum ateus afirmarem, com toda a convicção, que não há evidências que suportem a própria existência do galileu retratado na bíblia, que tantos outros historiadores da época deveriam ter retratado tal profeta, se ele tivesse sido "tão famoso assim", e fazem tais afirmações com todo o orgulho de quem defende uma posição inteligente. E não se importam, é claro, de procurar entender o método histórico ou quais são os
argumentos utilizados pelos historiadores em defesa da existência deste homem. Em vez disso, empinam o nariz e dizem que é óbvio e ainda têm a cara-de-pau de taxar de estúpido quem os desafia! Que empinem o nariz, então, para que, ao caminhar, não vejam por onde andam, tropecem e caiam de boca no chão!
Devo dizer que os ateus que se encaixam nesta descrição são poucos, mas os ateus em geral dão confiança a estes poucos da mesma maneira que tantos crentes não fanáticos confiam nos grupos de fanáticos, considerando-os "bons" e enaltecendo o fanatismo religioso. Bem, justo é justo, todos somos crédulos de vez em quando. Felizmente, o ateísmo tem a característica singular de possuir uma grande quantidade de céticos que questionam mesmo as afirmações que lhes são favoráveis.
Diz-se que ateísmo não está associado a dogmas, mas a crença na inexistência divina pode ser, em alguns casos, um dogma. Isso não diz respeito a "ter ou não ter certeza", mas sim ao comportamento com respeito a ela. Muitos ateus afirmam que não podem ter certeza absoluta a respeito da inexistência, mas manifestam raiva perante o questionamento, classificando quem pensa o contrário como estúpido. Deve-se, entretanto, separar convicção de dogma. Uma crença só pode ser classificada como dogma se ela se a sua força não diminui diante de evidências contrárias a ela, mesmo que estas evidências são inconclusivas. Neste caso, as evidências são descartadas por não serem conclusivas e absolutas na refutação da crença, enquanto que, no caso de uma convicção, o indivíduo leva a evidência em consideração, talvez reajustando ou enfraquecendo a posição. Dogmas geralmente causam rejeição ao questionamento, às vezes até raiva.
Note-se que, ao menos em teoria, ateus não deveriam ter dogmas, mas este não é sempre o caso.
Uma crítica comum dos ateus aos cristãos é com
respeito à ideia "odiar o pecado e amar o pecador". Amar o pecador,
neste caso, é querer que ele fique bem longe, desrespeitá-lo e
desprezá-lo, ou seja, usam esta desculpa quando, de fato, odeiam pecado e
pecador. Sabendo disso, quando ouvi a frase "pessoas merecem respeito,
mas crenças não", senti um calafrio na espinha. E com toda a razão. A
situação é totalmente análoga, esta frase é usada por muitos ateus como
desculpa para desrespeitar crença e crente, demonstrando uma vergonhosa
intolerância à crença e aos crentes por meio de um vale-tudo digno dos
religiosos fanáticos que eles criticam. Um religioso sem religião cuja
crença mais religiosa - ironia das ironias! - é aversão a qualquer
religião.
E vemos aqui a marca registrada do fanatismo religioso: a hipocrisia.
Existe
uma linha muito fina entre criticismo e desrespeito e todos estamos
sujeitos a cruzá-la em algum ponto. Quando cruzarmos, devemos nos
desculpar, pois não há nada que agrave mais as consequências de um
desrespeito do que a falta de humildade. Alguém que cruza uma cerca e
continua seguindo em frente não perceberá que já cruzou a cercas e
ficará cada vez mais longe dela, até que tenha a humildade de olhar para
trás. É por isso que eu, sendo ateu, estou criticando o ateísmo e, de
certa forma, dando um tiro no meu próprio pé. Prefiro, pois, ficar sem
meu pé a deixar isso passar em branco.
Apesar de todas as semelhanças, a grande diferença entre ateísmo e religião é a ausência de rituais e de preceitos morais dogmáticos. Enquanto a religião, em geral, é tradicionalista e
conservadora, o ateísmo é, por construção, inovador.
Muitos religiosos se prendem ao fato de que há livros ateus, escolhem um
destes e chamam-no de "bíblia", mas eles desconsideram que, apesar de o ateísmo atual ter, no mínimo, séculos de existência, os livros mais populares são atuais. Nesta ideologia, não existe saudosismo nem lamentação pelo mundo estar indo para o "mau caminho".
Quanto à credulidade, é impossível dizer que ela não está presente no ateísmo, mas, de qualquer forma, ela não é exaltada sob o pseudônimo de fé, mas criticada, críticas que são muitas vezes bem construídas e dificilmente tratam-se de dizer que "é assim porque é". Mesmo nos casos em que ateus são crédulos e tomam uma posição errônea, não é tão difícil convencê-lo do seu erro mostrando evidências e uma argumentação consistente, coisa que não é tão fácil quando o fanático é religioso.
O ateísmo tem problemas, isto é claro, e não podemos nos cegar a eles, mas também é flexível e bastante unificado, ele não se divide por causa de diferenças de crença, ao mesmo tempo que permite uma liberdade pessoal muito grande com respeito à crença. Eu não posso dizer se ateísmo se classifica como uma religião, mas, mesmo que assim seja, não se trata de uma religião qualquer. Trata-se de uma ideologia revolucionária.