sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

"Como você pode ter tanta certeza?"

O tribunal está em sessão. Quem está no banco dos réus é Mário, a acusação é assassinato. Várias evidências são apresentadas pela promotoria. Aparentemente, houve uma briga e o assassino deixou na cena do crime algumas gotas de sangue. Um teste de DNA mostra que o sangue pertence ao réu. Havia marcas de pegadas cena do crime que são compatíveis com um par de sapatos sujos de terra - a mesma terra que é lá encontrada - que estavam na casa de Mário. Em sua posse também foram encontradas roupas manchadas com o sangue da vítima. Mário tinha motivos de sobra para querer a vítima a sete palmos abaixo da terra.

Não foram necessários mais do que 15 minutos de discussão para que o juri chegasse à sua decisão: o réu é culpado de todas as acusações. Joana, a namorada de Mário, é claro, não gosta disso. Ela reclama que o julgamento foi injusto, como pode o juri ter tanta certeza nessa decisão? E se houve uma grande conspiração por parte da polícia para incriminar o réu? Oras, o teste de DNA tem uma chance em um trilhão de acusar um falso positivo, e se o réu for simplesmente muito, muito, muito, muito azarado? O crime foi realizado sem que houvesse uma só testemunha, como o juri pode acreditar que Mário estava lá se ninguém viu?

Como ousam eles considerar a teoria de que Mário é culpado como a única "verdade absoluta"?

Pensemos por um segundo. Joana teria alguma razão? Será que existe alguma possibilidade do réu ser, afinal de contas, inocente? Sim, é claro que existe. Agora, é razoável supor que o réu é inocente? Quem é que, diante de tantas evidências, não julgaria o réu como culpado sem nem sequer piscar para pensar? De que vale a pena agarrar-se com tanto fervor numa possibilidade tão remota de ter cometido um erro? Quem é que acredita que é injusto declarar que Mário é culpado em tais circunstâncias?

Joana.

Oras, Joana pode dar tantos murros nessa faca quanto ela quiser, ela pode gritar e espernear à vontade, mas Mário vai pra cadeia e ninguém vai perder o sono por isso.

"Olhe, eu estou disposta a admitir que o seu ponto de vista é possível, mas como você pode dizer que o meu ponto de vista é impossível?" É o que dizem as Joanas por aí, como se não soubessem como defender o seu próprio ponto de vista com argumentos ou evidências e procurassem chegar a um acordo, pedir uma trégua, numa tentativa de não se sentirem prejudicadas. Ou seja, pedem água. Mas em que circunstâncias alguém pede água senão numa briga? Por que tratar uma discussão como se fosse uma disputa?

Oras, numa disputa, um ganha somente às custas da derrota do outro, enquanto que, numa discussão, quem tem o maior lucro não é aquele que defende melhor o seu ponto de vista, pelo contrário, é aquele que aprende mais. Além do mais, se o propósito de uma discussão acerca de um assunto polêmico for chegar à conclusão que os dois lados deste assunto são igualmente possíveis, então, pra começo de conversa, para quê discutir? Não seria mais fácil os indivíduos envolvidos dizerem "todas as possibilidades são igualmente possíveis" e encerrar a discussão?

É claro que discussões não podem sempre ser vistas desta forma, dificilmente a questão é sim ou não, e não é apenas a questão da existência de meios termos, mas de problemas laterais correlacionados ou que influenciam alguma decisão numa situação prática. Há de se tomar cuidado para não prender-se no extremo de uma questão ou de negar-se a ouvir uma opinião contrária.

Por que Joana acredita tanto na inocência do seu amado? Simples: porque ela quer acreditar. É a Primeira Regra do Mago:

As pessoas são estúpidas; dada motivação o suficiente, quase todo mundo acreditará em quase tudo. Porque as pessoas são estúpidas, elas acreditarão numa mentira porque elas querem acreditar que ela é verdade, ou porque elas têm medo de que ela possa ser verdade.

É extremamente importante notar que isso vale para ambos os lados. Muitas vezes, alguém defende um ponto de vista extremo, não porque tem evidências, mas porque quer acreditar naquele extremo, enquanto que aquele que argumenta pelo meio-termo esta apenas tentando ser sensato. Deve-se, portanto, saber distinguir entre uma situação e outra.

Não importa a situação, qualquer ponto de vista, seja extremo, meio-extremo ou meio-termo, é defendido por argumentos e evidências, não por negociação. Dizer que um fato bem estabelecido é falso pela vontade de acreditar na sua falsidade é dar murro em ponta de faca. Tentar negociar e suavizar o ponto de vista alheio sem argumentação ou evidência é acariciar a faca: os cortes são inevitáveis e a faca não perderá o seu fio.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Feliz 2012!

"O fim está próximo!" O único propósito desta frase é causar medo e escândalo. Antes fosse uma ideia nova, antes hoje nós tivéssemos mais razão para acreditar que o mundo chegará ao seu fim do que tiveram os pobres que testemunharam a queda do Império Romano, a Santa Inquisição e as Cruzadas, a Crise de 29, as duas guerras mundiais, a Guerra Fria, entre tantos eventos catastróficos já ocorridos.

Dizem que os sinais dos tempos são claros. Sim, são claros, como sempre foram, o tempo todo as pessoas viam tais sinais na época em que viviam. Crises e guerras acontecem o tempo todo, durante toda a História.

Já sobrevivemos a Deus e ao diabo, acho que não teremos problema em sobreviver a uma previsão (que não foi) feita pelo povo maia acerca do ano que vai chegar.

Deixo aqui duas listas de datas para o fim do mundo ao longo da História: a primeira tem 242 previsões de fim de mundo, a segunda deve ter 183, caso não tenha errado nas contas.

Desejo um próspero ano novo a todos!

Correção no texto "Jesus, Buda e a influência deste no cristianismo"

No texto Em busca do Jesus histórico 6: Jesus, Buda e a influência deste no cristianismo, cometi um erro ao usar o livro "The Gospel of Buddha" como fonte. Fiz uma pequena edição no texto original e adicionei uma nota ao final do texto.

Além disso, gostaria de notificar que a série  "Em busca do Jesus histórico" não chegou ao seu fim! Portanto, não fiquem tristes: em breve, publicarei mais textos a respeito do cristianismo primitivo, das diferentes formas que as pessoas viam o galileu, a visão dos historiadores a respeito de quem foi Jesus, entre tudo o que eu conseguir cavar a respeito do assunto.

Não percam!

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Feliz natal!

Por que temos quatro estações no ano? Esta dúvida assombrou nossos antepassados enquanto eles observavam a ligação entre as estações do ano e o movimento do Sol pelo céu. Em nossa História, curiosos antigos do hemisfério norte observavam a nossa estrela movendo-se do seu ponto mais ao norte vagarosamente em direção ao sul. Os dias, outrora quentes, iam se tornando cada vez mais frios, as folhas amarelavam e despencavam das árvores, os animais iam se recolhendo para suas tocas conforme chegava aquele período do ano em que do céu caíam aqueles cristais brancos e gelados de água.

Eles chegaram à conclusão racional: tudo estava morrendo juntamente com o astro mais importante para a vida na terra.

E então, de repente, no dia 25 de dezembro, o Sol parava de mover-se ao sul. Era o solstício de inverno (hoje em dia, devido a uma alteração no calendário, o solstício ocorre no dia 22). A partir deste dia, o Sol começava novamente a sua ascensão. A morte não o derrotara, a vida não se fora, a esperança renascia.

Era costume deles darem significado aos movimentos dos astro como se o céu fosse o papel sobre o qual os deuses contavam as suas histórias. Astrologia. E assim, o dia 25 de dezembro tornou-se uma data especial. Ao redor do mundo, eram-lhe dados vários significados diferentes. O mais intrigante deles é o nascimento de uma divindade no Império Romano.

Sol Invictus (Sol invencível), o deus Sol, aquele que não pode ser conquistado pela morte.

A celebração Dies Natalis Solis Invicti, ou nascimento de Sol Invictus, foi instituída oficialmente em 274 d.C. e permaneceu apenas até 387 d.C. por uma razão simples: a cristianização do Império Romano. Outra divindade também celebrada nesta data era o deus Saturno, o deus da agricultura, na festa denominada Saturnália, em que os romanos tinham o hábito de trocar presentes. Outro costume comum em várias culturas era o de comer carne, pois esta era a época do abate.

E quem é que não gosta de comer um peru no natal? (Podem fazer piada, mas que é verdade, é).

Apenas para constar: apesar dos boatos, o nascimento do deus Sol egípcio, Horus, não era celebrado nesta data, mas entre outubro e novembro. Há muitos boatos sobre muitas divindades antigas cujo nascimento era celebrado nesta data, mas suspeito que a grande maioria seja fabricação. O nascimento a partir de uma virgem também é erroneamente atribuído a muitas divindades. A associação mais engraçada é que Mithra, divindade do Zoroastrianismo, que foi uma grande religião antiga no mundo iraniano, teria nascido em 25 de dezembro de uma virgem em uma caverna, quando, na verdade, Mithra nasceu a partir da rocha (que dificilmente pode ser classificada como virgem) deixando para trás uma caverna. Bem, ao menos a data de comemoração de aniversário parece ter alguma base.

A origem destes boatos é provavelmente a primeira parte do filme Zeitgeist.

De qualquer maneira, é fato que havia muitas celebrações nas semanas que precedem e seguem o solstício de inverno por vários povos, celebrando várias divindades diferentes. É claro que Roma, ao dominar outros povos, teria um grande trabalho para tirar deles seus costumes, suas tradições. O cristianismo foi provavelmente a maior arma na tentativa de unificar a crença - e, portanto, facilitar o controle.

A escolha de Jesus como sendo o novo deus Sol parecia bastante natural do ponto de vista político. Desta forma, o Império não teria que acabar com costumes e tradições, bastava mudar o nome das divindades cultuadas, estratégia que provou ser um sucesso.

E Jesus ganhou um aniversário.


É por isso que, hoje em dia, a celebração do natal está cercada de simbologia e tradição cujos significados se perderam no tempo com as crenças pagãs que os criaram. A tradição varia de país para país, dependendo dos rituais pagãos que havia nestes antes de sua cristianização e da influência dos rituais de outros países.

O vídeo acima credita a origem do Papai Noel à divindade Bes, do antigo Egito. Acho difícil sustentar tal alegação. Entretanto, é fácil perceber que o Papai Noel, de acordo com sua lenda, tem as características de uma divindade: ele pode demais, sabe demais e está em vários lugares ao mesmo tempo na noite de natal. O velho barbudo, na verdade, trás uma mistura bastante curiosa de características de duas figuras.

Nicolau de Mira, também conhecido como São Nicolau, viveu de 270 a 343 na atual Turquia. Sua mania de entregar presentes às crianças era bastante conhecida, em especial a de deixar moedas em botas. As gravuras deste santo apresentam-no com cabelos e barba brancos e vestes vermelhas, assim como as vestes de qualquer outro bispo da sua época (não, caro leitor, a roupa do Papai Noel não é invenção da Coca-Cola). Entretanto, o dia de sua celebração era 6 de dezembro. Neste dia as crianças eram presenteadas em sua memória. Além disso, imagino que ele não tinha a capacidade de sair voando por aí no dia de natal.

Odin, por outro lado, um deus de bastante importância entre povos germânicos antigos, possuía um cavalo de oito patas chamado Sleipnir, que era capaz de pular grandes distâncias. Durante o festival germânico de solstício de inverno que recebia o nome de Yule, Odin era retratado como conduzindo uma grande festa de caça selvagem pelo céu. As crianças tinham o costume de deixar botas com cenoura, açúcar ou palha ao redor das chaminés para que o cavalo voador de Odin pudesse comer. Como recompensa, Odin deixava presentes ou doces às crianças. Este costume existe ainda hoje nos povos germânicos, enquanto outros povos penduram meias em vez de botas.

Associar divindades de povos pagãos a santos católicos era uma prática comum dos missionários na tentativa de cristianizar estes povos. A Igreja Católica tentou por um tempo acabar com os rituais de origem pagã, como a entrega de presentes, mas não obteve sucesso. É assim que nasce o Papai Noel que nós conhecemos hoje em dia.

Dizem que Natal é uma festa cristã. Alguns chegam a dizer que o Papai Noel deveria ser abolido do natal, pois "não está na bíblia". Pergunto-me se estes também abominam a árvore de natal, que pode estar relacionada à adoração de árvores na antiguidade, enquanto outras vezes elas eram enfeitadas em homenagem aos deuses, como Thor. Será que eles também entregam presentes à maneira de Saturnália? Será que eles também cantam músicas natalinas, à maneira que era feito durante o Yule, num conjunto de rituais eslavos denominado Koleda? E quanto às velas, guirlandas e enfeites de todo o tipo? Como os judeus se atrevem a comemorar o Hanukkah no mesmo dia? E os hindus, que comemoram o Pancha Ganapati entre os dias 21 e 25 de dezembro, como se atrevem? Aliás, se eles têm tanto medo assim dos deuses pagãos e o Natal é uma festa pagã...

Oras, por que raios comemorar o Natal então?

Esta é uma boa pergunta... Por que comemorar o Natal?

Oras, Natal é uma festa que transcendeu eras, culturas e religiões. Diferentes povos sempre procuraram e encontraram diversas razões pela qual comemorar nesta data marcada pelo nosso querido Sol. Oras, talvez não precisemos procurar, talvez não precisemos de razão nenhuma para celebrar.

Não precisamos de um motivo, a festa já é motivo o bastante!

Não é lindo ver as cidades todas enfeitadas, cheias de luz, de velhos barbudos andando pelas ruas, badalando os sinos, as crianças ganhando balas e pedindo presentes de natal? Não é comovente ver crianças mandando cartas endereçadas ao Polo Norte, ao que outros, por compaixão, respondem a este pedido desesperado de ajuda? Não chega a ser quase divino que as pessoas decidem ter mais compaixão só porque aquele dia está marcado no calendário?

Oras, mas é claro que sim, caro leitor! É 25 de dezembro, chegou agora aquele dia mágico, vivo, iluminado. Os deuses se foram, mas, para a nossa alegria, a festa ficou.

Celebremos a humanidade, a esperança de um mundo melhor, o verão... Festejemos a nossa curiosa mania de encontrar uma desculpa esfarrapada para sermos felizes!

Desejo a todos os queridos leitores deste blog um feliz Natal, Hannukah, Pancha Ganapati, Saturnália, Yule, Solstício de Verão... Enfim, tenham um feliz 25 de dezembro!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Ateísmo, uma religião (ou quase)

Existem muitas ideias que se espalham entre os ateus mais convictos, mais religiosos. E digo religiosos por um motivo bem simples: ateísmo, mesmo que tecnicamente não seja uma religião, possui várias das características comuns às religiões. Uma delas é a existência de um conjunto de fanáticos, que se tornam cegos e disseminam ódio e desrespeito às pessoas crentes sob o pretexto de que "crenças não merecem respeito", fãs de vitimização, de fazerem-se de coitados e perseguidos, quando ao mesmo tempo não colocam limites à própria raiva e recusam-se a tentar compreender a cabeça dos religiosos sem pré-julgá-los.

Ateísmo, por definição, é simplesmente ausência de crença em Deus. Por esta definição, uma pessoa qualquer, ou crê em Deus, ou é ateia. Claro, definição é definição, mas será esta a definição usada na prática, socialmente? Comparemos com cristianismo. O dicionário Priberam dá duas possíveis definições para a palavra: "religião de Cristo" ou "doutrina de Cristo". Seria justo dizer que todas as religiões denominadas cristãs podem ser ditas "de Cristo"? Teria o nazareno de milênios atrás fundado cada uma delas? Seria correto dizer que elas seguem a doutrina "de Cristo"? Ou seria mais correto dizer que elas seguem uma doutrina cujo centro e objeto de adoração é uma divindade de nome Jesus Cristo? E digo "uma divindade" porque as religião cristã dão características bem diferentes a Jesus, não se pode dizer "o Jesus Cristo". E fica impossível associar cada uma dessas divindades a um homem que viveu dois mil anos atrás.

Resumindo, a definição de cristianismo está associada ao homem Jesus Cristo, mas o significado prático desta palavra não está. O detalhe é que essa associação é feita na mente das pessoas que se denominam cristãs. Alguém pode não seguir nenhuma religião e denominar-se cristão. Oras, o que define alguém como cristão não é a definição da palavra, mas o quanto as crenças e características deste indivíduo se encaixam naquelas esperadas de um cristão (adorar a Jesus, ir à igreja, professar a fé em Deus...). Aliás, esta é a definição utilizada na prática, não apenas para esta corrente filosófica, mas também para qualquer outra. Pela definição do dicionário é impossível determinar quem é cristão e quem não é.

E por que ateísmo seria diferente?

Oras, ateísmo, na prática, já fugiu à sua definição há tempos. Muitos não professam uma crença em divindade alguma sem se auto-denominarem ateus. Entre os ateus, um adolescente rebelde que diz não acreditar em Deus não é um ateu "de verdade". Muitos deles consideram apenas um ateu "de verdade" aquele que busca informações a respeito das religiões, da crença em um deus, professando abertamente sua ausência de crença, que não acredita em informações aleatórias sem evidências, entre outras coisas. Já ouvi muitos ateus dizerem o quanto é óbvio que marxismo é uma religião. Oras, eu desconheço qualquer definição da palavra religião que classifique marxismo como tal e que não inclua o próprio ateísmo.

Assim, o que, na prática, classifica um ateu não é simplesmente a sua crença ou descrença em divindades. A palavra ateísmo está tão carregada de características que muitas pessoas, apesar de, por definição, serem ateias, negam-se a declararem-se como tais, não pelo medo da repressão ou preconceito, mas sim por causa de um padrão de comportamento que os ateus (sem perceber) esperariam destes indivíduos.

Afirmar a descrença em divindades na sociedade atual não é uma mera constatação de uma ausência de crença, mas um cartão de entrada à ideologia denominada ateísmo. Sendo assim, ateísmo está mais próximo de "crença na negativa" (ainda que não seja crença absoluta) do que de "descrença". Eu não tenho medo de, como ateu, ser possivelmente classificado como pertencente a uma religião; prefiro ser racional a render-me ao medo e fazer um julgamento tendencioso. Religiosidade não é o problema, nem mesmo religiosidade e excesso: não há mal em defender e viver de acordo com princípios comuns a outros. O problema é o fanatismo, é criar um muro entre si mesmo e aqueles que não têm os mesmos princípios.

Dizem que ateísmo não pode ser uma religião porque os ateus pensam diferentemente uns dos outros. Oras, não seria isso verdade em qualquer religião? Quase não há crença que seja comum a todos os cristãos, o mesmo vale para os ateus. Mas existe, sim, uma forma de pensar "média" no cristianismo, ou forma de pensar de maioria, que muitos consideram fator determinante para um indivíduo ser considerado cristão. Por exemplo, nem todos os cristãos afirmam que Jesus Cristo é ao mesmo tempo Deus e filho de Deus, mas a maioria deles não considera cristão alguém que não afirme isso.

Ateísmo também tem uma forma de pensar "média". Infelizmente, assim como no cristianismo, essa forma de pensar média é, em alguns pontos, tendenciosa e crédula. Vale notar que isso não pode ser dito de cada ateu em particular, ainda que seja muito religioso - isso varia muito. Apesar disso, há muitas ideias que se espalham rapidamente e sem questionamento pelos ateus.

Um dos exemplos pode é dado por esta crítica ao Bule Voador. Alguém contou uma anedota no site do Bule envolvendo um óbvio estereótipo de um crente fanático, acrescentando a ela vários elementos que são, no mínimo, duvidosos. Na matéria original, que foi removida e substituída por uma retratação, ainda pode-se ver alguns comentários demonstrando crença total na anedota, que, felizmente, não é universal, mas ainda assim preocupante.

Um conjunto de afirmações absurdas que são facilmente engolidas por ateus são aquelas apresentadas na primeira parte do documentário Zeitgeist, que "mostram" características da vida de Jesus que são comuns a várias outras divindades da antiguidade, afirmando que a vida deste homem teria sido uma invenção-conspiração do Império Romano na tentativa de criar uma religião manipuladora.

Sinto muito, caro leitor, mas, só para dar um exemplo, o número de discípulos de Horus varia muito de história para história, e vi algumas fontes afirmarem que em nenhuma delas este número era doze. Há sim, semelhanças, que fariam a maioria dos cristãos corarem de vergonha (posso citar várias semelhanças com o budismo, por exemplo), mas este documentário força a barra e força a audiência a engolir um sapo. A ideia de que o Império Romano inventou este homem nazareno é simplesmente absurda para qualquer um que tenha a menor preocupação de investigar a História a fundo.

Aliás, como é comum ateus afirmarem, com toda a convicção, que não há evidências que suportem a própria existência do galileu retratado na bíblia, que tantos outros historiadores da época deveriam ter retratado tal profeta, se ele tivesse sido "tão famoso assim", e fazem tais afirmações com todo o orgulho de quem defende uma posição inteligente. E não se importam, é claro, de procurar entender o método histórico ou quais são os argumentos utilizados pelos historiadores em defesa da existência deste homem. Em vez disso, empinam o nariz e dizem que é óbvio e ainda têm a cara-de-pau de taxar de estúpido quem os desafia! Que empinem o nariz, então, para que, ao caminhar, não vejam por onde andam, tropecem e caiam de boca no chão!

Devo dizer que os ateus que se encaixam nesta descrição são poucos, mas os ateus em geral dão confiança a estes poucos da mesma maneira que tantos crentes não fanáticos confiam nos grupos de fanáticos, considerando-os "bons" e enaltecendo o fanatismo religioso. Bem, justo é justo, todos somos crédulos de vez em quando. Felizmente, o ateísmo tem a característica singular de possuir uma grande quantidade de céticos que questionam mesmo as afirmações que lhes são favoráveis.

Diz-se que ateísmo não está associado a dogmas, mas a crença na inexistência divina pode ser, em alguns casos, um dogma. Isso não diz respeito a "ter ou não ter certeza", mas sim ao comportamento com respeito a ela. Muitos ateus afirmam que não podem ter certeza absoluta a respeito da inexistência, mas manifestam raiva perante o questionamento, classificando quem pensa o contrário como estúpido. Deve-se, entretanto, separar convicção de dogma. Uma crença só pode ser classificada como dogma se ela se a sua força não diminui diante de evidências contrárias a ela, mesmo que estas evidências são inconclusivas. Neste caso, as evidências são descartadas por não serem conclusivas e absolutas na refutação da crença, enquanto que, no caso de uma convicção, o indivíduo leva a evidência em consideração, talvez reajustando ou enfraquecendo a posição. Dogmas geralmente causam rejeição ao questionamento, às vezes até raiva.

Note-se que, ao menos em teoria, ateus não deveriam ter dogmas, mas este não é sempre o caso.

Uma crítica comum dos ateus aos cristãos é com respeito à ideia "odiar o pecado e amar o pecador". Amar o pecador, neste caso, é querer que ele fique bem longe, desrespeitá-lo e desprezá-lo, ou seja, usam esta desculpa quando, de fato, odeiam pecado e pecador. Sabendo disso, quando ouvi a frase "pessoas merecem respeito, mas crenças não", senti um calafrio na espinha. E com toda a razão. A situação é totalmente análoga, esta frase é usada por muitos ateus como desculpa para desrespeitar crença e crente, demonstrando uma vergonhosa intolerância à crença e aos crentes por meio de um vale-tudo digno dos religiosos fanáticos que eles criticam. Um religioso sem religião cuja crença mais religiosa - ironia das ironias! - é aversão a qualquer religião.

E vemos aqui a marca registrada do fanatismo religioso: a hipocrisia.

Existe uma linha muito fina entre criticismo e desrespeito e todos estamos sujeitos a cruzá-la em algum ponto. Quando cruzarmos, devemos nos desculpar, pois não há nada que agrave mais as consequências de um desrespeito do que a falta de humildade. Alguém que cruza uma cerca e continua seguindo em frente não perceberá que já cruzou a cercas e ficará cada vez mais longe dela, até que tenha a humildade de olhar para trás. É por isso que eu, sendo ateu, estou criticando o ateísmo e, de certa forma, dando um tiro no meu próprio pé. Prefiro, pois, ficar sem meu pé a deixar isso passar em branco.

Apesar de todas as semelhanças, a grande diferença entre ateísmo e religião é a ausência de rituais e de preceitos morais dogmáticos. Enquanto a religião, em geral, é tradicionalista e conservadora, o ateísmo é, por construção, inovador. Muitos religiosos se prendem ao fato de que há livros ateus, escolhem um destes e chamam-no de "bíblia", mas eles desconsideram que, apesar de o ateísmo atual ter, no mínimo, séculos de existência, os livros mais populares são atuais. Nesta ideologia, não existe saudosismo nem lamentação pelo mundo estar indo para o "mau caminho".

Quanto à credulidade, é impossível dizer que ela não está presente no ateísmo, mas, de qualquer forma, ela não é exaltada sob o pseudônimo de fé, mas criticada, críticas que são muitas vezes bem construídas e dificilmente tratam-se de dizer que "é assim porque é". Mesmo nos casos em que ateus são crédulos e tomam uma posição errônea, não é tão difícil convencê-lo do seu erro mostrando evidências e uma argumentação consistente, coisa que não é tão fácil quando o fanático é religioso.

O ateísmo tem problemas, isto é claro, e não podemos nos cegar a eles, mas também é flexível e bastante unificado, ele não se divide por causa de diferenças de crença, ao mesmo tempo que permite uma liberdade pessoal muito grande com respeito à crença. Eu não posso dizer se ateísmo se classifica como uma religião, mas, mesmo que assim seja, não se trata de uma religião qualquer. Trata-se de uma ideologia revolucionária.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Além da maconha: A guerra de preconceitos

Fato lamentável, em geral as pessoas não conseguem enxergar nada além do preconceito. É só apresentar motivos para que elas o tenham que o próximo passo será fechar olhos e ouvidos. Então os protestos da USP começaram porque alguém fumou maconha e foi levado à delegacia? Ah, são culpados, o assunto acabou, não há mais o que discutir.

Engraçado é a maconha ser menos nociva que o cigarro e, apesar disso, dificilmente caracterizar-se um fumante como bandido ou vagabundo. Pirataria também é contra a lei e também sustenta o crime organizado, mas nem por isso seria aceitável que a polícia tratasse compradores de produtos pirateados como marginais. Ninguém fica preocupado com os indivíduos que compram tênis da Nike, apesar de várias acusações dela utilizar mão-de-obra semi-escrava.

Perturba-me muito que os policiais tenham tido tanto trabalho para levar três fumantes de maconha para a delegacia quando, de acordo com a lei brasileira, eles não poderiam nem sequer serem presos por isso. Entende-se que na maioria das vezes a polícia comumente não apreende usuários de drogas senão para pressioná-los a entregar os traficantes.

Por que estaria a polícia dando batidas em alunos em busca de drogas? Coisa que, aliás, não é nem sequer permitida pela lei a não ser que haja provas concretas que fundamentem alguma suspeita. Em alguns casos o juiz pode anular as provas obtidas numa busca pessoal que não foi bem fundamentada. O propósito inicial dela não era garantir a segurança dos alunos? E quanto aos trechos mal-iluminados e com pouco movimento, por que continuam sem iluminação e por que os policiais não estão lá vigiando?

Desde maio (que foi quando o acordo entre Rodas e a Polícia Militar foi firmado) discutia-se que a Polícia Militar não estava preparada para atuar como segurança interna da universidade. Vale notar que a polícia faz rondas no campus da USP desde 1997 até maio deste ano e sua presença não era maior nem menor que no resto do Estado de São Paulo. A diferença agora é que a polícia está atuando como se fosse parte da segurança interna da universidade. Não há mais violência no campus que nos seus arredores, então uma presença mais forte da polícia lá dentro não se justifica. Ou seja, o acordo firmado entre Rodas e a Polícia Militar é que é um tratamento especial aos estudantes da USP, não o contrário, como se estudantes fosse marginais.

Desapontador ver pessoas tendo que apelar cegamente para a lei da maioria. Não são todos os 80 mil estudantes da USP que aderiram aos protestos, e 58% deles posicionam-se a favor da polícia no campus. Mas quando foi que todo o público saiu em protesto nas ruas? Fizeram isso com a descoberta da extrema corrupção no governo anterior? Teria a maioria dos estudantes aderido aos conhecidos protestos de 68? Alguém poderia lembrar que houve naquele ano a passeata dos cem mil, mas esta envolveu muito mais pessoas que apenas os estudantes. Nem mesmo os caras-pintadas constituíam a maioria dos estudantes da USP ou de qualquer outra universidade.

Há pouco tempo, houve uma passeata em Barão Geraldo contra o estupro, reunindo apenas cerca de 400 estudantes. Se esta linha de raciocínio estivesse correta, poderíamos concluir que a maior parte da população é a favor do estupro, não?

Não sei em que mundo as pessoas vivem para esperar que todos os estudantes da USP protestem quando algo está errado.

Assembleia dos estudantes da USP
Queiram ou não, milhares de estudantes protestam e este é um número bem expressivo. Se 58% dos estudantes são a favor da polícia, 36% são contra ela. Se alguém pensa que 42% não é muito, pense de novo: no Brasil, menos de 8% da população é negra. Vale também lembrar que na FFLCH, que é o ponto central das manifestações, abriga seis dos nove melhores cursos da USP e que lá se concentram os estudantes menos abastados, o que mostra que os preconceitos que os manifestantes  não estudam ou que são "filhinhos de papai" são falsos.

E quanto à violência do movimento? Carros depredados, pichações, pedras atiradas... Sim, é fato, os estudantes não são nada santos e, sinceramente, eu esperaria um comportamento muito melhor deles. Entretanto, vale lembrar de novo que até nos protestos estudantis de 68 houve violência contra a polícia, incluindo coquetéis molotov. É isso o que as pessoas fazem quando têm medo do pior: elas se tornam violentas. Isso vale para os dois lados, a existência de coquetéis molotov não se justificam em circunstância alguma.

Não quero de maneira alguma tentar justificar as viaturas que foram depredadas em consequência dos protestos. É uma vergonha que estudantes tenham feito isso. Conforme dizem vários relatos, a polícia pode ter sido a responsável pela depredação da reitoria, mas não pelas pichações. Mesmo que a polícia, tenha utilizado de gás lacrimogênio na moradia da USP e mantido os estudantes em cárcere privado (conforme mostra este vídeo, encontrado nesta matéria do site G1), os estudantes não deveriam em hipótese alguma ter depredado coisa alguma. A imprensa pode esconder milhões de fatos que a menor das pedras atiradas contra ela ainda será injusta. Não há situação alguma em que o cuspe a um policial possa ajudar senão para provocar ainda mais raiva e violência por parte deste.

A violência fere o próprio propósito do movimento estudantil e apaga o perfume das flores que são oferecidas e da diplomacia.

A atuação da polícia na desocupação da reitoria foi vergonhosa. Após o mandato judicial e a recusa dos estudantes de saírem do prédio, a entrada dos policiais foi de surpresa, durante a madrugada. Não houve negociação antes da invasão, não houve tentativa de terminar a situação sem que houvesse um confronto. Haviam 400 policiais mais 30 cavaleiros contra 70 estudantes. Aqueles não portavam armas não letais e nem sequer revólveres, mas submetralhadoras. Uma arma feita para matar rápida e eficientemente. Chegaram em carros, motos, ônibus e helicópteros, tudo muito rápido para que não houvesse tempo para nenhuma reação indesejada. Havia policiais também na moradia, impedindo que eles saíssem de lá, provavelmente para impedir maiores confrontos. Uma repressão extrema para que não houvesse nenhum perigo.

Quando uma estudante vai da moradia em direção à reitoria durante a desocupação, um grupo de policiais impedem-na, ameaçando-a à prisão caso ela tente atravessá-los. Eles formam um cerco, cruzam os braços e encaram-na. Mal havia ela chegado ao local, sem importunar e sem reclamar senão da atitude dos policiais, estes reagiram como se ela estivesse carregando uma bazuca ou como se fosse seguida por no mínimo 20 indivíduos.

A única arma que ela carregava era uma câmera e ela estava só.

Ao final da operação, os policiais se parabenizaram: ninguém saiu ferido, ninguém morreu, ótimo, tudo foi às mil maravilhas!

A polícia foi, de fato, extremamente eficiente... se isso fosse uma guerra! Onde eles estavam com a cabeça para fazer uma operação desta proporção? Por que todo este drama por parte da polícia?

Alguém está pensando o mesmo que eu?

Isso é medo!!! A Polícia Militar está morrendo de medo! Eles não fazem a menor ideia de que estão meramente lidando com estudantes rebeldes, eles pensam que o inimigo deles é uma quadrilha organizada de traficantes ou terroristas. Eles estão preparadíssimos para invadir uma refinaria onde há indivíduos armados até os dentes com metralhadoras, rifles e bombas... mas não têm a menor sensibilidade para compreender a mente de um estudante, de um manifestante, de um civil revoltado com o sistema.

É assim que se programa um policial: cuidado com os estudantes, eles podem parecer inofensivos, mas são muito perigosos! Vejam como eles chutaram os carros da polícia! Vejam como eles atiraram pedras nos jornalistas! Quando outros se desculparam por isso, é claro que eles só estavam sendo lobos em pele de cordeiro.

Assim como nós, que carregamos no nosso uniforme estrelas em homenagem às atuações históricas sangrentas dos nossos antepassados, como esta mais embaixo, em homenagem à "Revolução", quer dizer, ao Golpe de 64.

Não podemos arriscar, temos que garantir que haja o mínimo de pessoas feridas. E, é claro, é por isso que nós iremos armados com submetralhadoras numa proporção de seis policiais para cada manifestante. Isso é totalmente razoável diante das circunstâncias.

Eles são treinados para não terem que usar de força letal, mas não para serem humanos. Eles não parecem se importar quando um indivíduo tem que ficar uma semana sem trabalhar depois de ter sido atingido por uma bala de borracha e não parecem sentir culpa quando vários policiais agridem com seus cassetetes um indivíduo que quer fugir.

Os policiais são incapazes de entender a cabeça dos estudantes. Os estudantes em geral também têm dificuldade de compreender a cabeça do policial que acredita profundamente que está colaborando para a manutenção da paz e da ordem. Essa não é uma guerra de maconha, é uma guerra de preconceitos. O estudante que existe na cabeça dos policiais está bem longe dos estudantes de carne e osso. Uma coletiva falácia do espantalho. Os agentes da lei são muito bons com cassetetes e armas e desconhecem a linguagem da argumentação, da discussão. Os primeiros aprenderam a obedecer sem questionar e os últimos desprezam a hierarquia. Os dois grupos não falam a mesma língua.

Repressão à greve de 2009 na USP
O reitor é obsessivo por controle e não consegue se conformar com a rebeldia dos estudantes. Esta obsessividade já estava visível na greve de 2009 (cuja repressão foi noticiada internacionalmente). Desculpe-me, Rodas, não dá para colocar estudantes sob controle, eles nasceram para questionar. Isso não é o mesmo que dizer que eles sejam criminosos. Tentar arrancar a rebeldia dos estudantes faria a universidade perder todo o seu propósito de construir o conhecimento.

Rodas está completamente fora de controle, o que é de se esperar de um obsessivo por controle. Não há dialogo com ele, ele não entende português. Não espere que ele ceda à pressão, ele provavelmente pensa que, se ele sair ou fizer como os estudantes pedem, a USP se desmoronará. Ele já demonstrou pensar assim por suas próprias palavras. E há testemunhas do radicalismo dele. A Faculdade de Direito, dirigida por ele de 2007 a 2009,  o declarou persona non grata.

Ele está fora de si.

Vários indivíduos que defendem que a polícia deve sair do campus estão fazendo comparações entre este conflito e o período de ditadura militar. Muitos acreditam que esta afirmação é extrema, radical, exagerada. Talvez não seja. Quando se fala em ditadura militar, as pessoas pensam nos vilões de cinema, maus, violentos, sem empatia e sem coração. Entretanto, do ponto de vista dos ditadores, a ditadura era bem justificada. Ainda hoje há quem acredite nisso.

Afinal de contas, os comunistas que eram contra a ditadura militar eram, sem dúvida, assassinos, sequestradores, rebeldes e criminosos. Os militares temiam uma insurreição, temiam que os comunistas tomassem o Estado à força e fizessem chacina semelhante a outras chacinas feitas em nome da ideologia de esquerda. Eles torturavam pessoas que, muitas vezes, eram, de fato, criminosos, culpados de todas as acusações.

A História transformou a ditadura numa vilã de cinema, mas duvido que tal comparação seja justa. Ela foi, sim, uma vilã, mas vilões do mundo real quase sempre são vilões porque são loucos, não porque são maus. A ditadura estava cheia de Rodas obsessivos por controle e por disciplina. A obsessão por controle e o medo transformam-se rapidamente em repressão, mesmo que não seja intencional.

Mas, intencional ou não, o dano é o mesmo.

Se a comparação entre ditadura e os conflitos da USP parecem ser absurdos, ela não parece mais tão absurda ao entender que os militares eram tolos em vez de maus. Os militares da ditadura eram fanáticos e fanáticos não são maus, apenas cegos. Muitas vezes, tornam-se extremamente estúpidos e brutais.

Eis a minha opinião de leigo, caso ela seja de alguma valia:

Acredito que haja uma saída para este cenário de loucura. O movimento estudantil tem a obrigação moral de tentar estabelecer algum diálogo com o reitor, mas isto provavelmente não dará nenhum resultado satisfatório. O reitor está fora de controle; entretanto, a polícia está apenas desinformada e despreparada para lidar com a situação. Portanto, é essencial que haja um diálogo entre os estudantes e a Polícia Militar.

Os estudantes que acreditam na força dos livros serão sábios se também acreditarem na força do diálogo. Afinal de contas, um livro nada mais é que uma conversa registrada em papel. Se um policial não entende a cabeça de um estudante, é preciso que este ao menos compreenda a cabeça daquele para que um diálogo seja possível.

Não vejo por que não seria possível, por exemplo, se o movimento estudantil, por meio de panfletos e discussões, defendesse que os estudantes não devem causar danos às viaturas e, em troca, os policiais deixariam as bombas de efeito moral e de gás lacrimogênio guardadas na delegacia. O movimento estudantil poderia incentivar os estudantes a não usarem drogas nas dependências da universidade enquanto a polícia deixaria de efetuar batidas nos estudantes.

Um acordo onde os estudantes concordariam em evitar o uso de drogas dentro do campus seria um movimento inesperado, deixaria a mídia sem saber o que dizer e colocaria Rodas em cheque. Sem a polícia para atrapalhar, seria mais fácil lutar pela substituição do reitor. Se o objetivo é encontrar uma solução, é preciso esquecer o preconceito e deixar de lado a obsessão por querer que todos vejam quem está certo. Deve-se esquecer a justiça e pensar na forma mais eficiente de resolver o problema.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Em busca do Jesus histórico 6: Jesus, Buda e a influência deste no cristianismo


Podemos encontrar muitos paralelos entre relatos a respeito de Jesus Cristo e de Siddhattha Gautama, mais conhecido como o Buda, o líder espiritual que viveu entre 563 e 483 a.C., mesmo numa análise superficial destes dois indivíduos históricos. Isso vai bem além de ambos serem líderes de duas das maiores religiões do mundo atual e a relação entre as histórias das duas personagens não é mera especulação.

A primeira relação mais óbvia é que ambos foram mestres, tiveram discípulos pregadores e foram de casa em casa para pregar as boas novas para aqueles que se dispusessem a ouvir. Este é um tema que não se encontra em outras religiões. Ambos prometiam uma nova ideia, uma nova doutrina. Ainda que Buda tenha nascido rico, ele escolheu viver como um mendigo, se sustentando a partir do que recebia nos lugares em que visitava, mas sem levar roupas extras ou a comida do dia seguinte.

Reunindo Jesus os doze, deu-lhes poder e autoridade sobre todos os demônios, e para curarem doenças; enviou-os a pregar o reino de Deus e a fazer curas, dizendo-lhes: Nada leveis para o caminho, nem bordão, nem alforge, nem pão, nem dinheiro, nem tenhais duas túnicas. Em qualquer casa em que entrardes, nela ficai e dali partireis. Em qualquer cidade em que vos não receberem, saindo dela, sacudi o pó de vossos pés em testemunho contra eles.

Esse costume de não pregar àqueles que não mereciam ouvir as pregações também não é exclusividade das regras de Jesus.

E o Abençoado disse-lhes: "O Dharma e o Vinaya1 Proclamado pelo Tathagata2 brilham quando exibidos, e não quando são escondidos. Mas não deixem que esta doutrina, tão cheia de verdade e tão excelente, caia nas mãos daqueles que desmerecem-na, onde ela será desprezada e desdenhada, tratada de forma vergonhosa, ridicularizada e censurada."

1 As duas partes dos ensinamentos de Buda. Dharma é a ordem natural das coisas e Vinaya é um conjunto de regras disciplinares.2 Um título de Buda que significa que ele está acima das coisas que vem e que vão, ou que ele encontrou a verdade.
The Gospel of Buddha, Paul Carus, XVII.15 (tradução livre)

É bastante conhecido que Jesus também falou a respeito de luz e que não se deve escondê-la. Buda significa aquele que despertou ou talvez iluminado, ele era conhecido como aquele que salva o mundo do sofrimento, da miséria e da morte.

se, pois, Jesus aos judeus que o haviam crido: Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sois meus discípulos,

conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.
João 8:31-32
uma hipótese acerca da origem da semelhança entre estas duas figuras históricas: os essenos. Estes eram uma seita judaica que praticava a austeridade, a pobreza e a abstenção dos prazeres mundanos. Acredita-se que a origem desta seita foi a influência de monges missionários budistas. Esta seita, por sua vez, pode ter sido fonte dos costumes que Jesus decidiu adotar.

Não estou de maneira alguma tentando transformar Jesus em um apêndice de Buda. Jesus tem várias ideias e ensinamentos próprios. Além disso, quantas pessoas da antiga Palestina não teriam olhado para os essenos com desdém? Como nós já vimos, não era comum neste local e época aparecerem profetas messiânicos pregando a violência? Quantos deles aprenderam (ou criaram!) a ideia de uma revolta pacífica? E quantos foram capazes de disseminar a ideia de que a prática  da caridade e da aceitação dos "pecadores" não só não era errado, como era o correto, o que deveria ser feito?

Hoje em dia é comum associar religião e bondade, mas esta não era uma ideia muito popular na época. As regras religiosas eram bastante arbitrárias e exclusivas. Jesus, assim como Buda, espalhou a ideia de uma religião cuja principal regra não era a idolatria, o sacrifício e o sofrimento, mas a prática da bondade. É ironia do destino Jesus (e provavelmente também de Buda) ter por fim acabado por se tornar um ídolo cujos seguidores não somente idolatram, deixando seus ensinamentos num patamar bem inferior, como também condenam aqueles que não fazem o mesmo. Isso à desvalia do personagem histórico que tanto questionava e se recusava a aceitar dogmas religiosos quando estes não faziam sentido. Aliás, aqui está outro ponto em comum.

Em seguida, Buda lista os critérios pelos quais uma pessoa sensata pode decidir quais ensinamentos aceitar como verdade. Não acredite em ensinamentos religiosos, diz ele aos Kalamas, só porque alega-se que eles sejam verdade ou mesmo pela aplicação de diversos métodos ou técnicas. O conhecimento fundado na experiência de um indivíduo podem ser questionados.
Ele adverte que as palavras do sábio devem ser ouvidas com cuidado e levadas em consideração. Em outras palavras, não é a aceitação passiva, mas, em vez disso, o questionamento constante e o teste pessoal para identificar quais das verdades você é capaz de demonstrar por si mesmo que de fato reduzem o seu próprio estresse ou miséria:
  • Não se deixe levar pelo que se aprende a partir da repetição,
  • nem pela tradição,
  • nem pelo rumor,
  • nem pelo que está nas escrituras,
  • nem por suposição,
  • nem por um axioma,
  • nem por raciocínios capciosos,
  • nem pela propensão sobre uma noção que foi ponderada,
  • nem pela habilidade aparente de outrem,
  • nem pela consideração "O monge é nosso professor."
Kalamas, quando vocês souberem por si mesmos: "Estas coisas são boas; estas coisas não são condenáveis; estas coisas são elogiadas pelos sábios; empreendidas e observadas, estas coisas levam ao benefício e à felicidade," entrem e permaneçam nelas .'

Tanto as histórias de Buda quanto de Jesus relatam milagres. Entre os possíveis milagres de Buda estão andar sobre a água e ter nascido de uma virgem. Muitos também caracterizam Buda como uma divindade. Entretanto, tem um fato bastante surpreendente em muitos relatos a respeito de Buda que não se encontra nos que são referentes a Jesus: Buda não somente não faz milagres como se recusa a realizar milagres, caracterizando-os como desprezíveis e até proibindo seus discípulos de fazerem-nos.

"Um discípulo ordenado não deve ostentar nenhuma perfeição sobre-humana. O discípulo que com más intenções e por cobiça ostenta uma perfeição sobre-humana, seja ela visões celestiais ou milagres, não é mais um discípulo do Sakyamuni.1
Eu os proíbo, ó bhikkhus,2 de empregar quaisquer feitiços ou suplicas, pois eles são inúteis, uma vez que a lei do karma governa todas as coisas. Aquele que tentar realizar milagres não entendeu a doutrina do Tathagata,"

1 Outro dos títulos de Buda. Sakya era a região em que ele vivia e muni é um título comum na Índia que significa sábio.

2 Classe de monges budistas. Nesta história, este termo foi anteriormente empregado aos ascéticos.

Ele também diz, em alguns relatos, que ele não é nada além de um homem. É mais provável (pelo critério da dissimilaridade) que Buda realmente tenha se recusado a realizar milagres. Em vez disso, ele parece deixar para o destino, ou karma, decidir quem será curado e quem não será. A prática de milagres era (e é) bastante comum, nada impede que uma pessoa acredite de forma honesta que está realizando milagres quando o que ela faz são apenas pequenos truques (veja o documentário Miracles for Sale, de Derren Brown, para convencer-se disso). Mas este não parece ser o caso de Buda.
Desculpem-me o tom provocativo, caros cristãos, mas me parece que o povo antigo tinha a mania de atribuir milagres a pessoas que não os faziam e que nem sequer alegavam fazê-los. Imaginem o que não atribuiriam a alguém que se dizia o messias e que possivelmente acreditava estar realizando milagres.

Por fim, quantos cristãos, caro leitor, você já não ouviu falar que você deve aceitar Jesus para salvar-lhe do seu sofrimento, da sua miséria interior? Como é comum falarem a respeito de como são ruins as coisas mundanas e que Jesus é o caminho para longe delas, não é? Quantos discursos cristãos sobre auto-domínio, auto-controle e disciplina não se ouvem por aí! Muitas formas de cristianismo também falam a respeito do auto-conhecimento, que é uma ideia... cristã? É mesmo? E onde, amigo leitor, está escrito isso? Na Bíblia? E quem é o autor destas ideias? Jesus? De forma alguma! Isso não está na Bíblia nem nos evangelhos! No máximo encontram-se ideias relacionadas ou que se encaixam bem com estas. Mas se não foi Jesus o autor dessas ideias, quem foi?

Oras, é óbvio, isto não só é parte da doutrina budista, como é o tema central dela!

Não parece uma tremenda ironia, caro leitor, que tantos cristãos afirmem com tanta convicção que Jesus Cristo é a única fonte da verdade e que eles, ao mesmo tempo, disseminem as ideias que vieram do fundador de outra religião? Não é estranho que eles julguem o espiritismo como "perigoso" porque este mistura o cristianismo com doutrinas hinduístas e budistas? Perigoso? Perigosa é esta hipocrisia!

Alguém poderia me perguntar: mas o que há de errado em aprender coisas com outras religiões? Nada, pelo que me consta. As religiões trazem tanto verdade quanto mentira, tanto coisas boas como coisas ruins. E, como disse Albert Einstein, "a mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original."


< Parte 5 Parte 7 >

P.S.: Cometi um crime enorme ao deixar de mencionar o fato que Buda também pregava a respeito de amar a todos de forma universal. Não, caro leitor, Jesus não inventou o conceito. Talvez este tenha sido o primeiro a atentar para o fato de que deve-se amar até mesmo os inimigos, o que, na minha opinião, é a parte mais preciosa de seu ministério. Entretanto, amar ao próximo, isso era conhecido tanto para os budistas quanto para os filósofos gregos, mas, aparentemente, não para os palestinos.


Edição:  Ao escrever este texto, usei como fonte o livro "The Gospel of Buddha", que, embora eu soubesse que a história dentro dele não seria totalmente confiável, imaginei que o autor teria usado apenas textos budistas (e talvez a própria imaginação) para construir o texto. Enganei-me: o autor deliberadamente usou também os evangelhos do novo testamento (incluindo o de João) como base para seu texto, não com o objetivo de enganar ou iludir a ninguém, mas de fazê-lo mais atraente ao mundo ocidental. Este é provavelmente o motivo de às vezes Buda fazer uso de algumas expressões típicas de Jesus, como "quem tem ouvidos para ouvir, que ouça" e "a verdade vos libertará". Sendo assim, deve-se ignorar isso.

Seria mais confiável comparar os dois indivíduos utilizando os textos mais antigos que contam a história de Buda, mas é claro que isso requer tempo e, portanto, não farei isso tão cedo.

sábado, 29 de outubro de 2011

Em busca do Jesus histórico 5: Criticismo textual

Vimos pelos textos anteriores que não é possível confiar no que está escrito como verdades históricas. Primeiro temos o problema do telefone sem fio: a história vai passando de boca em boca e se alterando aos poucos. Segundo, temos alterações intencionais no rumo da história. Pessoas em geral ignoram que os autores deliberadamente desobedeciam a lei divina "não levantarás falso testemunho". Mas não temos escolha, estes são os relatos que temos a respeito da vida de Jesus. O que faremos então? Como escolheremos entre os relatos mais prováveis e os menos prováveis?

Como separaremos o trigo do joio?

Existem quatro critérios comumente utilizados pelos historiadores para tentar determinar quem foi e o que fez o Jesus histórico. Que fique claro que não dá para determinar com certeza se Jesus fez uma coisa ou outra, mas é possível estimar a probabilidade com que um relato tenha sido histórico ou inventado.

O primeiro é o critério dos múltiplos testemunhos:
é mais provável que tenha acontecido algo que é relatado por mais de uma fonte independente do que algo que vem de uma única fonte. É preciso notar, entretanto, que, por exemplo, se Marcos relatou um evento que não aconteceu, Lucas e Mateus também vão relatar o mesmo evento porque eles usaram o evangelho do primeiro como fonte, então não podem ser considerados fontes independentes. Um exemplo, várias fontes dizem que Jesus foi batizado por João Batista, e também que Jesus pregou contra o divórcio. Vale lembrar que, do ponto de vista histórico, as fontes fora da bíblia são tratadas com igual teor que as que estão na bíblia.

Em segundo vem a dissimilaridade: se um livro relata um evento que parece ir contra o que o autor acredita ou que ele não teria motivos para inventar, então é provável que ele não tenha inventado. Se um evento parece ir muito a favor do ponto de vista do autor, deve-se suspeitar da sua historicidade. Nota-se facilmente que cada evangelista ou cristão primitivo tem um ponto de vista, uma teologia que ele quer transmitir através dos evangelhos e das cartas.

Cada evangelho é como um óculos através do qual a gente pode tentar observar o que aconteceu. Mas os evangelhos não são neutros ou objetivos, os óculos não são incolores. Cada óculos tem uma cor diferente. Quando se olha através de um óculos laranja, tudo fica mais laranja do que realmente é. Se olhamos através de um óculos alaranjado e vemos um objeto azulado, podemos concluir que o objeto é realmente azul, e provavelmente mais azul do que estamos vendo. Agora, se vemos um objeto laranja, devemos suspeitar que aquele objeto não seja tão laranja quanto parece. Talvez nem sequer seja real, mas apenas uma mancha no vidro.

Na parte 2, eu apresentei o critério da dissimilaridade para defender a existência histórica de Jesus, usando como exemplos o batismo por João Batista e a crucificação. Ou seja, de acordo com este critério, estes eventos são provavelmente históricos. Os historiadores costumam ver o batismo por João Batista como uma pista de que Jesus foi, de fato, discípulo deste antes de se tornar um mestre: é muito suspeito que os evangelhos tenham escondido isso de propósito, a ideia de um messias com um mestre não é muito convincente. Por outro lado, o nascimento de Jesus em Belém parece ser muito conveniente com a ideia de messias devido às profecias das escrituras, sendo assim é suspeito de ter sido inventado.

Terceiro, o critério da coerência social: os relatos que são coerentes com a cultura ou a sociedade da época são mais prováveis de ter acontecido do que os que não o são. Por exemplo, neste critério encaixa-se o anacronismo, que é a atitude comum de atribuir à história que ocorreu no passado eventos e costumes do tempo do próprio autor.
A doxologia ao final de Mateus 6:13 é comumente vista como adição posterior, sendo inclusive omitida nas melhores traduções:

E não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal, porque teu é o Reino, o poder e a glória para sempre. Amém’.

Compare com esta tradução:

e não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal.
Mateus 6:13
[E] não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos do mal.

A adição deste trecho foi feita por influência litúrgica. Aqui vemos que copistas adicionaram ao texto antigo uma crença vindos de sua própria época, não da época sendo relatada

Em Mateus 18, vemos Jesus criando regras para serem seguidas nas igrejas. Porém, igrejas não são da época de Jesus e uma evidência disso é que é difícil encontrar a palavra "igreja" em outros evangelhos ou mesmo neste. Vemos então que Mateus (isto é, o autor do evangelho, não me refiro ao apóstolo) escreve regras para as igrejas de seu tempo.

Os quatro evangelhos contam a história de Barrabás.

Por ocasião da festa o governador soltava um preso, a pedido do povo. Havia um chamado Barrabás, preso com outros sediciosos, os quais em um motim haviam feito uma morte. Chegando o povo, começou a pedir a graça que lhe costumava fazer. Disse-lhe Pilatos: Quereis que eu vos solte o Rei dos Judeus?

Vemos aqui o relato de um costume: Pilatos permitiria a soltura de um prisioneiro. Este costume não é relatado em nenhuma outra fonte e Pilatos, em vez de costumar ser complacente, pelo contrário, era insensível com os costumes judeus e também cruel. O historiador Josefo conta que houve um protesto dos judeus por dinheiro do templo ter sido usado para construir um aqueduto. Pilatos ordenou que soldados se misturassem com a multidão enquanto ele conversava com os judeus e, ao seu sinal, os soldados atacaram os manifestantes, ferindo e matando a esmo.

Este famigerado governador da Judeia não parecia do tipo que deixaria o povo escolher alguém para ser liberto. Barrabás é retratado como um membro de um motim que causou uma morte. Ele parece ser um zelota. Os zelotas eram uma seita religiosa que pregava que os judeus deveriam expulsar os romanos da palestina através da luta armada. Esta seita é conhecida por ter liderado a Primeira Guerra Judaico-Romana entre 66 e 73 d.C., época em que o evangelho de Marcos foi escrito. Então Marcos parece ter adicionado uma crítica a este movimento em seu evangelho: como podiam os judeus dar preferência à violência do movimento zelota em vez do pacifismo ensinado pelo Cristo?

Alguém poderia notar que o critério dos múltiplos testemunhos é a favor da existência e da soltura de Barrabás, então há uma pequena chance deste relato ser histórico até certo ponto. Por outro lado, o próprio nome Barrabás parece ter sido inventado: Bar Abbas quer dizer filho do pai. Compare isto a um dos títulos mais comuns de Jesus: filho do homem. Barrabás é um rival. É mais provável que não tenha existido.

Outro exemplo de anacronismo é a profecia de destruição do templo de Jerusalém. Discutiremos isso em outra postagem.

O último critério é o da a coerência: se alguma característica da história já foi estabelecida por outros métodos e algum relato, que não é suspeito ou descartável por algum outro critério, parece ser coerente com esta característica, então ele é, por convenção, considerado como histórico.
A partir do próximo texto, veremos qual o ponto de vista defendido por cada evangelho, quais são os óculos que cada autor coloca para enxergar a vida do famoso galileu. Estes óculos são de cores bem distintas e isto é uma pista das várias formas de cristianismo já existentes no século I.


< Parte 4 Parte 6 > 
Isto disseram seus pais, porque tinham medo dos judeus; porquanto estes já tinham combinado que se alguém confessasse ser Jesus o Cristo, fosse expulso da sinagoga.
João 9:22
Barrabás, preso com outros sediciosos, os quais em um motim haviam feito uma morte.

Chegando o povo, começou a pedir a graça que lhe costumava fazer.

Disse-lhe Pilatos: Quereis que eu vos solte o Rei dos Judeus?
Marcos 15:6-9
E, tomando o pão, e havendo dado graças, partiu-o, e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que por vós é dado; fazei isto em memória de mim.

Semelhantemente, tomou o cálice, depois da ceia, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue, que é derramado por vós.
Lucas 22:19-20
E, tomando o pão, e havendo dado graças, partiu-o, e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que por vós é dado; fazei isto em memória de mim.

Semelhantemente, tomou o cálice, depois da ceia, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue, que é derramado por vós.
Lucas 22:19-20

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Em busca do Jesus histórico 4: E (não é assim que) nasce o messias

Todos conhecem a história tradicional: a gruta, a manjedoura, os animais, os três reis magos, os anjos, os pastores. Atrelado ao nascimento do Cristo está também o nascimento de João Batista, seu precursor, fruto de uma a gravidez miraculosa. Seria essa realmente a história que a bíblia conta? E quanto desta narrativa é confiável?
Estou utilizando, nos meus estudos, A Bíblia de Jerusalém, uma bíblia (católica) de estudos da editora Paulus. Uma referência utilizada é esta aula sobre o evangelho de Lucas ministrada na Universidade de Yale.


Evangelho de Mateus


Maria achou-se “grávida pelo Espírito Santo”. José decidiu repudiá-la, mas recebeu a visita do anjo do Senhor em sonho e aceitou ser o pai da criança.

Depois que Jesus nasceu em Belém da Judeia, nos dias do rei Herodes, magos vindos do Oriente chegaram a Jerusalém e perguntaram: “Onde está o recém-nascido rei dos judeus? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo”.
Mateus 2:1-2

O primeiro detalhe a se notar é que não há nenhuma explicação do motivo pelo qual José e Maria encontram-se em Belém. Presume-se que eles moravam lá. E os magos não são ditos reis. Na verdade, a palavra grega utilizada, magos, designa membros da casta de sacerdotes do zoroastrismo, que tinham a reputação de serem astrólogos.
Os magos conversam com Herodes e dizem que o messias deve nascer em Belém, e o rei pede a eles que, quando voltassem, informassem a ele onde o menino se encontrava para poder homenageá-lo. Os magos continuaram o seu caminho e a estrela parou sobre onde o menino estava. Como seria possível? Uma boa teoria é que descrição da estrela de Belém assemelha-se às características do aparecimento do cometa Haley em 66 d.C.: do ponto de vista de alguém de Belém, ele apareceu no leste e foi indo em direção a oeste até ficar aparentemente parada sobre Belém ou alguma cidade próxima. Nenhum outro cometa teria exibido essas características próximo ao nascimento de Jesus. Aparentemente o evangelista presenciou esta estrela e decidiu usá-la na sua história.

Toda a ideia de um nascimento anunciado por uma estrela e que recebe visita de pessoas importantes não é original de Mateus, esta é uma receita antiga que teria ocorrido, de acordo com relatos, em nascimentos de semideuses ou deuses da antiguidade. Por exemplo, a história elaborada por Mateus é bem parecida com a história a respeito do nascimento do imperador Augusto (63 d.C.) e pode ter tomado esta como base.

Ao entrarem na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o adoraram. Então abriram os seus tesouros e lhe deram presentes: ouro, incenso e mirra.
Mateus 2:11

Casa? Não era uma caverna e Jesus não estava numa manjedoura? Não, a natividade na caverna vem do Evangelho da Infância de Tiago. E não há nenhuma menção à manjedoura em Mateus. E onde está escrito que os reis magos eram três? E onde está o nome tradicional deles, Melchior, Baltasar e Gaspar? Estes nomes não se encontram na bíblia, mas apenas num manuscrito escrito em Alexandria por volta do ano 500 d.C. denominado Excerpta Latina Barbari.

Os magos voltaram por outro caminho para não dizer a Herodes onde estava o menino e José, avisado em sonho pelo anjo, partiu para o Egito.

Quando Herodes percebeu que havia sido enganado pelos magos, ficou furioso e ordenou que matassem todos os meninos de dois anos para baixo, em Belém e nas proximidades, de acordo com a informação que havia obtido dos magos.
Mateus 2:16

Meninos de dois anos para baixo? Então já fazia uns dois anos que o menino havia nascido até a visita dos magos que se deu em Belém. E o anjo novamente apareceu em sonho a José para que ele voltasse para a Judeia.

Mas, ao ouvir que Arquelau estava reinando na Judeia em lugar de seu pai Herodes, [José] teve medo de ir para lá. Tendo sido avisado em sonho, retirou-se para a região da Galileia e foi viver numa cidade chamada Nazaré. Assim cumpriu-se o que fora dito pelos profetas: “Ele será chamado Nazareno”.
Mateus 2, 22-23

Está claro pelos versículos acima que os pais do nazareno não moravam em Nazaré, mas em Belém, e só depois deles terem voltado do refúgio no Egito é que eles foram morar em Nazaré. E aqui percebemos mais um desvio na famosa história.

Perceba que o massacre dos inocentes e a fuga para o Egito soa muito como a história de Moisés, onde o faraó mandou matar os recém-nascidos e Moisés foi acolhido pela filha do faraó, uma egípcia (Êxodo 1:15-22; 2:1-10).

Alguém poderia perguntar: em que parte do antigo testamento está escrito “Ele será chamado Nazareno”? Em lugar nenhum. O que mais se aproxima deste texto é Juízes 13,5, que diz “o menino será nazireu”, o que quer dizer consagrado. Neste caso, o menino é Sansão.

Mas onde estão os anjos? E os pastores? E o recenseamento do Império Romano? A visita de Maria a Isabel? As orações, o Magnificat e o Benedictus? Mateus não conta nada disso. Quem nos conta isso é Lucas.


Evangelho de Lucas


Tudo começa no nascimento de João Batista.

Abraão e Sara já eram velhos, de idade bem avançada, e Sara já tinha passado da idade de ter filhos.
Gênesis 18:11

Opa! Desculpem-me, abri a bíblia na página errada.

Certo homem de Zorá, chamado Manoá, do clã da tribo de Dã, tinha mulher estéril. Certo dia o anjo do Senhor apareceu a ela e lhe disse: “Você é estéril, não tem filhos, mas engravidará e dará à luz um filho. Todavia, tenha cuidado, não beba vinho nem outra bebida fermentada, e não coma nada impuro; e não se passará navalha na cabeça do filho que você vai ter, porque o menino será nazireu, consagrado a Deus desde o nascimento; ele iniciará a libertação de Israel das mãos dos filisteus”.
Juízes 13:2-5

De novo, abri a bíblia na página errada. Ah, agora sim:

No tempo de Herodes, rei da Judeia, havia um sacerdote chamado Zacarias, que pertencia ao grupo sacerdotal de Abias; Isabel, sua mulher, também era descendente de Arão. Mas eles não tinham filhos, porque Isabel era estéril e ambos eram de idade avançada.
Então um anjo do Senhor apareceu a Zacarias, à direita do altar do incenso. O anjo lhe disse: “Não tenha medo, Zacarias; sua oração foi ouvida. Isabel, sua mulher, lhe dará um filho, e você lhe dará o nome de João. Ele nunca tomará vinho nem bebida fermentada, e será cheio do Espírito Santo desde antes do seu nascimento.”
Lucas 1:5,7,11,13,15b

Compare também com este trecho:

Diga o seguinte aos israelitas: Se um homem ou uma mulher fizer um voto especial, um voto de separação para o Senhor como nazireu, terá que se abster de vinho e de outras bebidas fermentadas.
Números 6:2-3a

A mesma temática encontra-se também em 1 Samuel 1. Está claro que a história de Lucas a respeito de João Batista foi adaptada das escrituras. E veja também que, para Lucas, este é o nazireu. Também são encontrados paralelos no antigo testamento para os versículos 16 a 25.
Muitos conhecem o que o anjo Gabriel veio anunciar a Maria:

O anjo, aproximando-se dela, disse: “Alegre-se, agraciada! O Senhor está com você!”
Lucas 1:28

Detalhe: a tradução correta é “alegre-se” e não “ave”, a palavra em grego que encontra-se nos manuscritos é chairó, “alegre-se, rejubile-se”. Então, nada de reverência do anjo ao estilo romano.

Portanto o Senhor mesmo vos dará um sinal; eis que uma donzela conceberá e dará à luz um filho, e por-lhe-á o nome de Emanuel.
Isaías 7:14

Emanuel? Opa!

Você ficará grávida e dará à luz um filho, e lhe porá o nome de Jesus.
Lucas 1:31

Lucas copiou o trecho trocando o nome!

Há um problema de tradução comum de Isaías 7:14 (este é o motivo pelo qual eu citei uma tradução diferente deste). Os manuscritos em hebraico deste livro trazem a palavra ha'almah que quer dizer mulher jovem, ou donzela. Ao traduzirem o livro de Isaías para o grego, que era a versão utilizada pelo autor do evangelho, esta palavra foi traduzida como parthenos, que quer dizer virgem. E assim, por um erro de tradução, surgiu a ideia de que Maria deveria ser virgem.

Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo. O Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi e ele reinará para sempre sobre o povo de Jacó; seu Reino jamais terá fim.
Lucas 1:32-33

Novamente temos um trecho adaptado do livro de Isaías:

Porque um menino nos nasceu, um filho nos foi dado, e o governo está sobre os seus ombros. E ele será chamado Maravilhoso Conselheiro, Deus Poderoso, Pai Eterno, Príncipe da Paz. Ele estenderá o seu domínio, e haverá paz sem fim sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, estabelecido e mantido com justiça e retidão, desde agora e para sempre.
Isaías 9:6-7a

Maria, então, vai visitar Isabel “numa cidade de Judá” (não está claro qual cidade). Esta exclama algo parecido com o que se encontra no livro de Judite:

Ozias, príncipe do povo de Israel, acrescentou: “Minha filha, tu és bendita do Senhor Deus altíssimo, mais que todas as mulheres da terra. Bendito seja o Senhor, criador do céu e da terra, que te guiou para cortar a cabeça de nosso maior inimigo!”
Judite 13:23-24

Exceto, é claro, pela parte de cortar a cabeça. (Observação: na minha bíblia, este trecho está no versículo 18). E Maria responde:

Meu coração exulta no Senhor;
no Senhor minha força é exaltada.
Minha boca se exalta sobre os meus inimigos,
pois me alegro em tua libertação.
Não há ninguém santo como o Senhor;
não há outro além de ti;
não há rocha alguma como o nosso Deus.
Não falem tão orgulhosamente,
nem saia de suas bocas tal arrogância,
pois o Senhor é Deus sábio;
é ele quem julga os atos dos homens.
O arco dos fortes é quebrado,
mas os fracos são revestidos de força.
Os que tinham muito, agora trabalham por comida,
mas os que estavam famintos, agora não passam fome.
O Senhor é quem dá pobreza e riqueza;
ele humilha e exalta.
Levanta do pó o necessitado
e, do monte de cinzas ergue o pobre;
ele os faz sentarem-se com príncipes
e lhes dá lugar de honra.
Pois os alicerces da terra são do Senhor;
sobre eles estabeleceu o mundo.”
1 Samuel 2:1b-5a,7-8

Ou, melhor dizendo:

Minha alma engrandece ao Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
pois atentou para a humildade da sua serva.
De agora em diante, todas as gerações
me chamarão bem-aventurada,
pois o Poderoso fez grandes coisas em meu favor;
santo é o seu nome.
A sua misericórdia estende-se aos que o temem,
de geração em geração.
Ele realizou poderosos feitos com seu braço;
dispersou os que são soberbos no mais íntimo do coração.
Derrubou governantes dos seus tronos,
mas exaltou os humildes.
Encheu de coisas boas os famintos,
mas despediu de mãos vazias os ricos.
Ajudou a seu servo Israel,
lembrando-se da sua misericórdia
para com Abraão e seus descendentes para sempre,
como dissera aos nossos antepassados".
Lucas 1:46b-55

Maria voltou para casa, em Nazaré. Não está muito claro se ela ficou para o nascimento do filho de sua prima Isabel. Após o nascimento de João, Zacarias também fez uma oração que provavelmente também foi criada pelo evangelista a partir de alguns salmos e passagens de outros livros.

Houve então um recenseamento “de todo o mundo habitado” (que, em termos da época, quer dizer no Império Romano). E foram então José e Maria para Belém. O menino nasceu, foi envolto em faixas e colocado numa manjedoura, pois não havia um lugar para eles na hospedaria.

Agora vem a visita dos magos, você deve imaginar! Não, Lucas não menciona magos, apenas a visita de anjos e de pastores ao recém-nascido. Os anjos fizeram até um coro louvando a Deus.

Oito dias depois, o menino foi circuncidado. De acordo com a lei judaica (ver Levítico 12:2-4), a mãe deve esperar trinta dias, este é o período de purificação. Lucas narra que, depois deste período, José e Maria foram a Jerusalém para apresentá-lo no templo, oferecendo rolas ou pombos em sacrifício. Lá temos um profeta que faz um pequeno cântico, o Nunc Dimittis, baseada em várias partes do livro Isaías (52,10; 46,13; 42,6; 49,6). Também aparece uma profetisa, de nome Ana, cujas características são bem semelhantes à de Judite (8,4-6).

De Jerusalém, Maria e José vão diretamente para Nazaré, que, conforme a narração, é a cidade onde eles moravam. Enquanto que em Mateus eles receberam a visita dos magos por volta de dois anos após o nascimento do menino, segundo Lucas, eles já voltaram muito antes a Nazaré. E nada de massacre dos inocentes ou de ida ao Egito.

As duas narrativas são muito diferentes e contém contradições entre si. Sendo assim, fica muito difícil confiar nas narrativas do nascimento de Jesus e de João Batista como relatos históricos. Muitos historiadores duvidam que João Batista tenha sequer tido algum parentesco com Jesus.

Mas afinal, no que poderemos confiar então? Como decidiremos quais eventos fazem parte da história e quais foram adicionados a ela? De que maneira separaremos quem foi Jesus Cristo do que as pessoas diziam que ele era?

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