segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Em busca do Jesus histórico 3: Lucas, o mentiroso descarado


Eu mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e decidi escrever-te um relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo, para que tenhas a certeza das coisas que te foram ensinadas.
Lucas 1:3-4

O que será que Lucas quer dizer com “investigar tudo cuidadosamente” e “relato ordenado”? Será que Lucas é um historiador e está tentando relatar os eventos de forma precisa, em ordem cronológica? Não, de forma alguma! Lucas decididamente altera não só a ordem dos eventos, como também os próprios eventos, com o intuito de defender sua ideologia.

Analisemos os relatos do nascimento de Jesus que Lucas e Mateus narram em seus evangelhos para tentar descobrir a data aproximada de seu nascimento. Tanto Lucas 1, 5 quanto Mateus 2:1 dizem que Jesus nasceu no tempo do rei Herodes. De acordo com os relatos do historiador Flávio Josefo, Herodes, o grande, partiu deste mundo em 4 a.C. Neste caso, Jesus deve ter nascido antes do ano 4 a.C. Lucas 2:1-2 também diz que Jesus nasceu durante o censo de Quirino. Novamente de acordo com Josefo, o censo de Quirino se deu em 6 d.C. Além do mais, o primeiro diz que o censo foi “no mundo todo”, enquanto Josefo dá a entender que este se deu na Síria e na Judeia. Algo não está correto.

No capítulo 3, Lucas dá uma data aproximada para o início do ministério de João Batista: o décimo quinto ano do império de Tibério César, o que seria em 28 ou 29 d.C. João 2:20 dá outra dica de data para o início do ministério de Jesus: já haviam se passado 46 anos do início da construção do templo de Jerusalém, o que situa este evento entre 27 e 29 d.C. Estas datas estão mais ou menos coerentes. Além disso, Lucas relata que Jesus tinha aproximadamente 30 anos no seu batismo. Se Jesus tivesse nascido em 6 d.C., ele teria por volta de 22 anos no início de seu ministério. Então, nada de nascimento durante o censo de Quirino.

Está claro o motivo pelo qual Lucas tentou colocar o nascimento de Jesus durante o censo de Quirino: ele quer dar uma justificativa para Jesus ter nascido em Belém devido às profecias messiânicas. Afinal de contas, ele era nazareno e não de Belém. Esta parece ser uma total fabricação: nenhum censo do Império Romano teria forçado as pessoas irem à cidade natal para se alistar. Lucas quer nos fazer engolir um sapo. Não, caro leitor, Jesus não nasceu em Belém.

Tem outro sapo que Lucas quer nos fazer engolir: a descendência de Davi. Comparando a genealogia dada por Mateus 1 com a dada por Lucas 3, vemos que elas são extremamente diferentes, exceto a descendência de Abraão até Davi. Há, entretanto, um pequeno erro nesta: Lucas troca Aram por Arni (que são possíveis variantes do mesmo nome) e adiciona um indivíduo, Admin (3:33), que é omitido em alguns manuscritos. Então, aparentemente, mesmo tento o antigo testamento como referência para a genealogia de Davi, Lucas erra. A não ser que Admin tenha sido adicionado posteriormente, coisa que eu, pessoalmente, duvido: é mais provável que este tenha sido retirado dos outros manuscritos para apagar o erro.

De Davi até Jesus (descontando Davi), de acordo com Mateus, temos 27 gerações e, de acordo com Lucas, 42 gerações. E vemos então outro sapo. É possível ver mais um destes em Mateus, onde ele copia as gerações de Davi até Zorobabel dada pelo Antigo Testamento, omitindo algumas para poder separar as gerações em grupos de catorze. E ele não saber contar: o último grupo tem um indivíduo a menos.

O engraçado é que, para argumentar que Jesus era descendente de Davi, Lucas e Mateus não precisavam se dar ao trabalho de inventar uma genealogia, bastava-lhe um pouco de matemática e também considerar mulheres como descendentes. É muito provável que praticamente todo o povo da Galileia, da Judeia e da Samaria da época de Jesus era descendente de Davi. Esta é, portanto, uma profecia verdadeira e inútil.

A teoria mais aceita entre os historiadores é que tanto Lucas quanto Mateus, ambos escritos aproximadamente entre 80 e 90 d.C., teriam utilizado duas fontes em comum: o evangelho de Marcos e uma fonte, denominada Q, que não sobreviveu ao tempo, mas que deveria conter uma lista de ensinamentos de Jesus mais ou menos no modelo do evangelho de Tomé.

Lucas (4:14-15) começa o ministério de Jesus mencionando brevemente que Jesus ensinou nas sinagogas por toda a Galileia e voltou para Nazaré. Lá, vemos o primeiro discurso a ser narrado pelo evangelista (4:16-30).

Jesus lhes disse: “É claro que vocês me citarão este provérbio: ‘Médico, cura-te a ti mesmo!’ Faze aqui em tua terra o que ouvimos que fizeste em Cafarnaum.”
Lucas 4:23

O discurso é rejeitado e os seus conterrâneos tentam jogar o nazareno de um precipício, mas ele escapa. A seguir (4, 31-37), Jesus vai a Cafarnaum para expulsar um demônio. Entretanto, Marcos narra esta expulsão no início do ministério de Jesus e só tempos depois é que ele volta a Nazaré para pregar. Em Mateus, Jesus também demora um tempo até voltar a Nazaré, onde ele sofre rejeição, embora não de forma tão exagerada quanto Lucas. Então não só Lucas altera a ordem dos eventos, deixando uma pista desta alteração no versículo 23, como também exagera a animosidade dos nazarenos contra o Cristo.

O que está acontecendo? Por que agora Lucas está alterando a ordem dos eventos? Por que, para Lucas, parece tão importante que Jesus tenha começado tudo em Nazaré? E por que ele está tentando exagerar a rejeição que o profeta sofrera em sua terra natal? Por que tanta confusão?

Vejamos mais uma alteração de ordem na narrativa. Há um consenso entre os historiadores que o autor do evangelho de Lucas é também o autor de Atos dos Apóstolos.

E Saulo estava ali, consentindo na morte de Estêvão. Naquela ocasião desencadeou-se grande perseguição contra a igreja em Jerusalém. Todos, exceto os apóstolos, foram dispersos pelas regiões da Judeia e de Samaria.
Atos 8:1

E pulando três capítulos:

Os que tinham sido dispersos por causa da perseguição desencadeada com a morte de Estêvão chegaram até à Fenícia, Chipre e Antioquia, anunciando a mensagem apenas aos judeus. Alguns deles, todavia, cipriotas e cireneus, foram a Antioquia e começaram a falar também aos gregos, contando-lhes as boas novas a respeito do Senhor Jesus.
Atos 11, 19-20

De novo, seu Lucas? O autor aqui parece ter uma fonte escrita com os relatos a respeito da morte de Estêvão, mas decide cortar a narração em duas partes para inserir três capítulos do seu livro entre elas para só depois colocar a conclusão da história. Mas o que haveria de tão importante para ser colocado antes da história de um grupo de cristãos anônimos indo pregar em terras não judaicas?

Eis a explicação: ao longo dos Atos dos Apóstolos, Paulo vai de cidade em cidade, pregando primeiro aos judeus, é rejeitado e depois vai pregar aos gentios. A evangelização em Atos começa em Jerusalém, onde há grande rejeição do cristianismo, e depois parte para a Judeia, para a Samaria, depois para os gentios e finalmente chega em Roma, que simboliza o mundo. Ou seja, cada vez mais longe de Jerusalém. A teologia de Lucas é que todo verdadeiro profeta começa em casa, é fortemente rejeitado e depois parte para fora de casa, onde é aceito, embora sempre seja perseguido.

Oras, se Jesus é verdadeiro profeta, ele deve ter começado a pregação em sua própria casa. É por isso que Lucas coloca o primeiro discurso importante de Jesus em Nazaré e narra uma forte rejeição. Esse também é o motivo por que o autor atrasa a narração das pregações dos cristãos anônimos: entre Atos 8 e 11, acontece a pregação de Filipe na Samaria e depois a de Pedro aos gentios. Para o autor, é preciso que alguém pregue na Samaria antes que os gentios também recebam a boa nova. A primeira pregação aos gentios (incluindo gregos) deve ser feita por alguém importante, como Pedro, não por indivíduos anônimos que fugiram por causa da perseguição a Estêvão. Isso estragaria a ideia que Lucas quis passar aos leitores.

Deixe-me esclarecer uma coisa. É provável que o evangelista, seja ele Lucas, o conhecido companheiro de Paulo, ou quem quer que seja, não esteja mentindo por mal. Ele talvez tenha pensado que ele estava corrigindo a história, fazendo ela se aproximar mais da história original. De fato, muitos cristãos tentaram fazer isso de diversas formas, antigamente não existia preocupação com a objetividade dos relatos históricos. De qualquer forma, tanto o relato deste quanto dos outros evangelistas devem ser analisados com ceticismo. Para podermos obter um retrato preciso da história por trás do evangelho, é preciso filtrar as adulterações.

E as mentiras de Lucas não param por aqui...


< Parte 2 Parte 4 >

13 comentários:

  1. Bem, quem sabe, na esperança de que seja mais sério do que aparenta, possa deixar estes links:

    http://defideorthodoxa-informadordeopiniao.blogspot.com/2009/12/belem-ele-veio-pequeno-dos-pequenos.html

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  2. Obrigado pela contribuição, Rodrigo. Vou escrever uma resposta a este texto em outra postagem. Por hora, limito-me a dizer que a teoria apresentada neste texto é inválida.

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  3. Bem, não há uma teoria unificada aí. Eu me limito a dizer que você vai ter de conseguir desbancar muita gente grande nos estudos bíblicos, ao dizer que as fontes das narrativas da infância não são independentes... e que Lucas tentou "encobrir", como um truque, suas alterações de ordem, que era uma prática corrente na historiografia biográfica temática antiga...
    Abraços.

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  4. E onde eu disse que as narrativas das infâncias não são independentes? Elas são completamente diferentes, não podem ter vindas de uma mesma fonte (veja, por exemplo, a parte 4).

    Eu também não disse que não era comum a alteração de ordem de textos, eu só estava chamando a atenção dos leitores para este fato e em especial que Lucas alterou a ordem do texto com a intenção de defender o ponto de vista dele. Isso se fazia antigamente como se faz hoje em dia, nada de diferente com Lucas, ele foi um escritor como qualquer outro. Sendo assim, o relato de Lucas não pode ser tratado como se fosse uma fonte objetiva da história de Jesus.

    Aliás, você mencionou que na antiguidade era comum alterar a ordem dos eventos. Outra coisa bastante comum era criar narrativas miraculosas para o nascimento dos indivíduos. Lucas fez ambos.

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  5. Quando você trabalha a tese de que Lucas buscou dar maior contextualidade histórica da narrativa de infância, subentende-se a dependência da narrativa de Mateus.

    E o que é uma "fonte objetiva"? Sou capaz de passar uns 4 livros clássicos, com toda metodologia histórica, mas 4 apresentações diferentes, da Revolução Francesa. O importante é que Lucas não pode ser acusado de "mentiroso", de forma leviana, porque não maquiou sua alteração de ordem, e provavelmente ficaria espantado de alguém apontar nisto uma desonestidade.

    E a tradição da narrativa miraculosa precedeu Lucas. E posições filosóficas quanto a milagres é algo externo à atividade de história.

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  6. Informadordeopiniao, é claro que eu exagerei ao dizer que Lucas é mentiroso.

    Acho que seria melhor dizer "narração objetiva" do que "fonte objetiva". Está claro que Lucas não faz a narração de forma objetiva. Por exemplo, se João ficou em casa e eu digo que Lucas foi as estádio de futebol para defender meu ponto de vista que Lucas é fanático por futebol, então eu não estou narrando de forma objetiva. Lucas faz isso com a história dele. Isso é bem diferente de apresentar um lado da história, eu poderia defender que João é fanático por futebol sem inventar que ele foi ao estádio de futebol para assistir o jogo.

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  7. Mas novamente, você força a retórica. Na minha época de estudante, chamávamos de "forçar a barra".
    Porque o que temos é alguém preenchendo a cena de João indo ao estádio, a partir de uma recordação mais geral chegada até ele, com elementos que o ajudam a expressar o significado e o impacto.
    É uma convenção literária usada até em relatos bem "objetivos" da época sobre processos de colheita em fazendas, por exemplo.
    Para além, temos a pessoa retratando uma ilustração emblemática das idas ao estádio por parte de João.

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  8. Mas Lucas não está preenchendo nenhuma lacuna, ele tinha uma fonte que apresentava uma ordem dos fatos que ele deliberadamente alterou para dar a ideia de que Jesus teria primeiro pregado na sua terra natal. Parece que você nem leu o texto.

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  9. Se você é tão exigente quanto à precisão dos detalhes acerca do que eu estou afirmando, por que eu não posso exigir com o mesmo rigor a acuracidade da história retratada pelo autor do evangelho, ainda mais quando tantos consideram-no como infalível e inspirado por Deus?

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  10. Muito bom o seu texto. Trabalhoso e preciso. revela como de costume, as incoerências históricas da Bíblia. Quando os padres no ano 150 começaram a escrever a Bíblia, na sua maior parte copiada dos dogmas essênios, inventaram esse conto sobre Jesus, á semelhança de mitos anteriores, e deixaram muitos furos. Uma estória inventada sempre ocorre essas distorções e desencontros. Jesus não existiu, nem seus pais, nem seus apóstolos. Tudo uma mera invenção com o intuito de enganar o povo, comover, amedrontar e tomar-lhes o dinheiro, como se vê até hoje.

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  11. Ao aplicar o método histórico para datar os evangelhos e cartas de Paulo, chega-se à conclusão que eles foram escritos no século I. Eles possuem muitas características que não seriam esperadas de um texto inventado.

    Essa história de que Jesus foi uma invenção posterior é muito fraca, não tem evidência nenhuma que aponte para isso, e os historiadores que estudam o novo testamento são praticamente unânimes na hipótese que Jesus, de fato, existiu.

    As incoerências são comuns. Elas existem, por exemplo, nos relatos que falam de Sócrates, e nem por isso duvida-se da existência dele.

    Leia mais a respeito no texto que eu escrevi sobre isso:

    http://opinioesdobandeirinha.blogspot.com/2011/10/em-busca-do-jesus-historico-parte-2.html

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  12. Gustavo

    Sou crente, tenho fé, por mais absurdo que seja, no entanto te agradeço pelo que escreves e como escreves. Gosto de ler e compreender e completar.

    Aceite meu abraço e minha admiração.

    Padre Antonio Piber

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