terça-feira, 10 de julho de 2012

Democracia e a Anel

Assembleia Nacional da Anel, 17 de junho, Plenária Final.
Um minuto de silêncio pelos estudantes perseguidos e mortos.

Talvez a etapa mais importante na minha compreensão sobre o que é socialismo foi minha viagem à Assembleia Nacional da Anel. O processo de discussão de assuntos, pautas e propostas era ao mesmo tempo dinâmico, bem organizado e democrático. Mas o mais curioso de tudo é que não havia líderes: havia apenas uma comissão cujo papel era anotar cada decisão tomada e conduzir as discussões e a plenária. Neste caso, quem é que dava a palavra final?

O voto.

Na Plenária Final, que foi, sem dúvida, a parte mais impressionante de todo o evento, as propostas separadas em diversos temas eram mostradas por um projetor e lidas à plateia. "Algum destaque?", perguntava uma das moças sentadas a uma mesa sobre o palanque. Frequentemente alguém levantava a mão e dizia "Destaque!" e a ele ou ela era dada a permissão de explicar o problema à plateia em 30 segundos. Muitas vezes, consistia apenas numa alteração das palavras. Por exemplo, em vários pontos em que lia-se "estudantes", foi sugerido que fosse adicionado "funcionários e professores", para dar um caráter de união à greve, o que é indubitavelmente necessário. Após a alteração, a proposta era colocada em votação:
- Delegados favoráveis à proposta, por favor, ergam seus crachás. Contrários. Abstenções. A proposta foi aprovada por contraste.

Quando o destaque apresentado gerava uma polêmica, ao autor eram dados 2, 3 ou 4 minutos para defender a alteração ou remoção da proposta. O mesmo tempo era dado a um defensor da proposta original e a votação decidia qual delas seria mantida. Tudo acontecia muito rapidamente, quem piscou perdeu algum detalhe.

A votação mais surpreendente foi sobre a principal reivindicação da greve a ser levada ao Comando Nacional de Greve dos Estudantes. Haviam duas propostas, os delegados votaram a favor da primeira. Ao ver a segunda proposta ser negada, sua defensora dirigiu-se à mesa que estava sobre o palanque. Depois a mesa dirigiu-se à plateia:
- Ela está me explicando que, como esta é uma votação muito importante, os observadores devem votar. Observadores favoráveis à proposta, por favor, ergam seus crachás...

Neste momento, meu queixo estava no chão. Em vez de dizerem que isso não era permitido ou de defenderem-se com algum artigo ou parágrafo no estatuto da Anel, permitiram que a votação fosse feita. Não havia burocracia como vi acontecer na CP do prefeito Silvio Félix e (mais de uma vez) no Conselho Universitário da Unicamp. A vontade do povo, de fato, era superior a qualquer regra previamente estabelecida.

Ah! E eu que pensava que sabia o que era democracia!

Afinal, quem é que cria as regras? Não é a própria plenária, o próprio parlamento? Oras, se é o próprio parlamento que as cria, então ele também pode alterá-las sem, para isso, ter que passar pela burocracia por elas criada.

Como não havia nenhuma figura de liderança, todas as divergências eram resolvidas a partir da negociação e do voto dos delegados. As polêmicas muitas vezes eram difíceis de se entender, de forma que era necessário bastante concentração e reflexão - ao menos da minha parte. De fato, como as defesas só se limitavam a, no máximo, 4 minutos, o expoente não tinha a oportunidade de mastigar as informações. Por isso, era necessário que o ouvinte já tivesse conhecimento básico sobre o assunto. E quem não tinha, claro, não custava conversar e discutir brevemente com a pessoa ao lado, o que acontecia o tempo todo, a despeito dos pedidos de silêncio por parte da organização.

As resoluções tomadas por essa assembleia com respeito à greve foram levadas ao Comando Nacional de Greve dos Estudantes e foram aprovadas.

Aprendi muitas coisas com esta experiência. Passei a entender que política se aprende apenas na prática, não na teoria. Não adianta simplesmente estudar ou pesquisar: deve-se aprender a discutir e defender seu próprio ponto de vista. Apenas participando das próprias tomadas de decisão é que se aprende como e por que elas são feitas, quais as pressões políticas envolvidas, os prós e contras de cada opção.

Em segundo lugar, também descobri que tanto a própria forma de funcionamento deste evento como a estrutura política dos sindicatos são fortemente baseadas nas teorias sócio-econômicas marxistas. Em outras palavras, isso é socialismo na prática. Ao contrário do que muitos costumam pensar, socialismo não é simplesmente teórico em quase nada.

Ao contrário do que se pensa, socialismo não significa necessariamente ausência de diferenças sociais, de salários ou remuneração diferenciada. Afinal de contas, numa verdadeira democracia, tudo é discutível. E é isso o que socialismo, de fato, significa: democracia.


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Mais detalhes sobre o evento

Deixo aqui alguns exemplos para que saibam a que nível de detalhes as decisões eram tomadas.

Na sessão de abertura, houve discursos de várias pessoas, incluindo um bombeiro (uma vez que a Anel apoiou a greve de bombeiros e policiais do Rio de Janeiro), vários comandos locais de greve das universidades federais e estudantes de outros países.

Os participantes foram divididos (aleatoriamente ou por livre escolha) em grupos para realizar discussões sobre diversos temas (a Greve das Federais, o Rio+20 e a Cúpula dos Povos, machismo, racismo, homofobia, o Novo Código Florestal, a Usina de Belo Monte...)

As discussões ocorrem da mesma forma que nos sindicatos e no movimento estudantil: quem tivesse algo para expor se inscrevia e os inscritos iam sendo chamados um a um. As falas dos participantes eram limitadas a 3, 4 ou 5 minutos.

No grupo de discussão sobre racismo, um rapaz disse ser contraditório a Anel apoiar a greve de policiais e bombeiros, porque, resumindo, "as instituições militares fazem parte do aparato de repressão de Estado, reprimem os pobres e os negros". Aplaudiram. Em resposta, uma moça argumentou: "Contraditório? Contraditório são os policiais negarem-se a obedecer o Estado e fazer uma greve quando deveriam estar oprimindo a população!" Os aplausos foram mais fortes.

Durante as discussões, as propostas de ação política que eram apresentadas pelos participantes eram anotadas para serem votadas (depois de previamente selecionadas) na Plenária Final.

Numa proposta, se não me engano, sobre reivindicação de aumento de bolsa estudantil, solicitaram que fosse antes reivindicada a alteração de uma lei que impedia este aumento. A alteração foi aprovada.

Quando surgiu a proposta de fazer cartazes e faixas contrárias à UNE nas greves e nos atos, uma moça apresentou um destaque bem simples, que foi fortemente aplaudido: "Gente, não precisa disso." A votação foi contrária à proposta.

Sobre a principal reivindicação da greve. A primeira proposta defendia o destino de 10% do PIB à educação e elaboração de um Plano Nacional de Educação que, de fato, atenda às necessidades do país. A segunda, além dos 10%, reivindicava também a estatização de faculdades privadas, o fim do vestibular e vagas nas universidades para todos os estudantes.

A defensora da primeira proposta explicou que quem escolhe as reivindicações da greve são os grevistas e não a Anel. O papel desta deveria apenas ser dar sustentação a estas reivindicações e não criar reivindicações que estão longe da atual realidade. A defensora da segunda disse que deveria-se pensar também nas necessidades dos estudantes das universidades privadas. A votação, tanto dos delegados quanto dos observadores, foi em favor da primeira.

Outro exemplo do caráter da democracia do evento foi quando alguém defendeu que a Anel deveria mudar sua posição com respeito às greves dos militares. Esta decisão havia sido aprovada pela CSP-Conlutas, à qual a Anel é filiada. A polêmica surgida é se a Anel deveria manter esta posição ou se esta deveria ser colocada sob discussão e votação. Houve, então, as defesas dos dois lados e a votação decidiu que a decisão tomada pela CSP-Conlutas deveria ser mantida.

Ao final de todas as resoluções, a mesa apresentou o órgão executivo que teria o papel de colocá-las em prática. Não havia nenhum destaque a ser apresentado e a votação em favor deste órgão foi unânime. Seus mandatos são revogáveis a qualquer momento.

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