segunda-feira, 21 de maio de 2012

Em defesa da religião

Um homem do século XXI com uma boa educação passa por no mínimo, 11 anos dentro de escolas, estudando matemática, literatura, arte, química, física, biologia, sem contar a formação cultural recebida pelos pais e pelas relações sociais com outros indivíduos formados. Passamos por inúmeras evoluções revoluções na história humana. Eis que então que o ateu moderno, um homem conheceu o valor do pensamento crítico, do raciocínio lógico e tantas outras formações culturais inacessíveis à maioria da população de hoje, é capaz de dizer: "Ah, mas eu não preciso de religião na minha vida."

É muito fácil dizer isso, não é?

De fato, depois que a sociedade está toda construída e de toda a formação que ele recebeu, ele é capaz de finalmente capaz de "libertar-se" da religião. Perfeitamente, assim como ele também não precisa mais de uma lança para caçar ou de um cavalo para se locomover. Mas será mesmo que o que foi construído a partir da religião seria possível de se construir de alguma outra forma? Mais ainda, será que seria sequer possível emergir uma sociedade a partir de homens não civilizados sem que eles construíssem uma religião?

Vejamos. Pegamos um grupo de bebês, colocamos eles numa grande ilha, longe de qualquer contato com a civilização. Criamos-lhes da forma mais básica possível, os ensinamos a caçar, pescar, enfim, apenas o essencial para a sua sobrevivência e esperamos um tempo bem longo, talvez milhões de anos. Como faríamos para impedir que eles criassem uma religião? Proibiríamos-lhes de manifestar qualquer crença no sobrenatural? Mas, se fizéssemos isso, não estaríamos influenciando-os com a nossa cultura e, portanto, alterando os resultados do experimento?

Não é nem sequer possível falar de uma sociedade de seres humanos que supostamente se desenvolveu sem a religião. Só houve na História da humanidade uma sociedade sem religião que se tenha conhecimento: a tribo indígena dos Pirarrã. Uma sociedade bem sucedida, mas pouco "desenvolvida" (o leitor entenda): não tem escrita, Estado ou leis. É bastante comum as pessoas cometerem anacronismo ao afirmarem que a humanidade poderia ter se desenvolvido da forma como se desenvolveu sem religião a partir da sua experiência com a sociedade atual. Ela está enraizada de tal forma em todas as culturas que é impossível determinar como elas teriam se desenvolvido sem sua influência.


O caráter social das crenças religiosas tiveram um papel fundamental na formação dos Estados e das leis. Ela foi um mecanismo rudimentar, mas eficiente, de transmissão e conservação do conhecimento acumulado. Em seus rituais encontram-se, por exemplo, práticas associadas à higiene e à prevenção de doenças, como nos conhecidos rituais de purificação do judaísmo.

Um fenômeno característico da religião é a projeção psicológica. Faz parte da natureza do homem atribuir a elementos do mundo externo as emoções e concepções internas. Ao analisar os textos religiosos antigos de forma literal, o que se encontra é um mito. Ao analisá-los como se fossem metáforas, o que se vê neles é um retrato da sociedade em que ele foi escrito e da opinião pessoal de quem o escreveu. São descrições de como o homem vê a natureza, a sociedade e a si mesmo.


É por isso, por exemplo, que existem deuses da guerra, da civilização, da lei, da justiça (característica da sociedade), da sabedoria, da coragem, do amor (característica do próprio homem), entre tantos outros exemplos, e é pelo mesmo motivo. As divindades centrais do hinduísmo, por sua vez, descrevem o processo como a sociedade se constrói (Brahma), se mantem (Vishnu) e se transforma (Shiva).

Como a projeção psicológica é natural ao homem, a criação da religião também é.

Vishnu e Shiva apresentam uma relação com as correntes de pensamento de esquerda e direita, ou liberais e conservadoras. Enquanto os liberais priorizam a transformação, a renovação da sociedade, os conservadores prezam pela manutenção da ordem social. Vishnu - o conservador - governa o mundo, impedindo a qualquer custo que Shiva - o liberal - destrua-o até o momento em que tudo se torna um caos impossível de se manter. Então Vishnu sai de cena e Shiva destrói tudo para que o mundo possa ser reconstruído por Brahma - uma descrição de como funciona a revolução.

Na doutrina budista, encontram-se várias ideias essenciais para a época e até mesmo para os dias de hoje: a valorização do pensamento crítico, do ceticismo, do auto-conhecimento, formas de lidar com o sofrimento humano que envolvem caridade, empatia (o budismo entendia sobre empatia bem antes da psicologia), a desvalorização da vingança... Por exemplo, Kalama Sutta, um discurso de Buda, defende o ceticismo, a autoridade de cada um em decidir por si mesmo no que deve acreditar e alerta para o que hoje nós denominamos falácias lógicas.

O budismo sobreviveu durante cinco séculos antes das histórias de seu fundador serem colocadas nos livros, mostrando como ele foi uma ferramenta poderosa na transmissão destas ideias mesmo sem serem colocadas nos livros.

As religiões são frequentemente criticadas pelos seus maus valores morais e por disseminar práticas perniciosas. Tome, por exemplo, a escravidão, tortura e outras práticas perversas perpetuadas pelas instituições religiosas há alguns séculos. Pela natureza da religião que é contrária ao questionamento e à crítica, foi bem difícil para os questionadores reverterem este quadro.

Entretanto, passam-se os séculos e a religião toma para si a posição contrária às mesmas práticas perversas que antes ela defendia. E o mais importante: com o mesmo rigor, dificultando o regresso à selvageria, conservando os valores morais que os antigos inimigos da religião lutaram tanto para estabelecer!

Que fique claro um detalhe: a religião não cria nem fornece uma fonte para os valores morais. Ela é, por natureza, um mecanismo de conservação. Por este motivo, ela precisa ser renovada pelos seus membros. Daí a grande importância do constante questionamento a ela.

É uma pena para a História que o catolicismo tenha se tornado um sistema autoritário, ditatorial, repressivo, imutável, inquestionável. Herança maldita do Império Romano. Durante a Idade das Trevas, Vishnu (a Igreja Católica) assassinou Shiva (os hereges), mantendo o caos. A dinâmica e diversidade revolucionária do cristianismo dos primeiros séculos só veio renascer recentemente com a Reforma Protestante. Não é à toa que ainda hoje ele defende uma ideologia arcaica: o cristianismo parou no tempo. Não é religião digna dos tempos modernos.

Comparem cristianismo e islamismo com judaísmo, budismo e espiritismo nas questões éticas contemporâneas como homossexualidade, aceitação de outras crenças, valorização da ciência, secularismo... Enquanto, em geral, os dois primeiros dizem "os descrentes serão eternamente torturados", os outros três dizem "salvação independe de crença".

Dizem que religião é antiquada, coisa do passado, contrária ao pensamento crítico, ao ceticismo, à razão. Estão equivocados, subestimam a capacidade de mutação e adaptação da religião. O pastor Gondim não é um caso isolado, ele representa um fenômeno que surgiu em resposta ao avanço da secularização e do ateísmo: o irenismo. Enquanto antirreligiosos fixam-se no que a religião é, ou às vezes até mesmo no que ela foi, não conseguem ver o que ela se tornando. Teorizam que é impossível que a religião se torne racional e não percebem que, na verdade, isso já está acontecendo. Eles cometem um erro atacar feroz e imprudentemente a religião como um todo, espalhando o sentimento de aversão e ódio. Isso é pensamento anti-irenista e, por isso, alimenta o fanatismo religioso. A religião deve ser atacada pelo seu lado podre, não pelo lado renovador.

4 comentários:

  1. Este texto é uma versão melhorada do texto, também de minha autoria, que se encontra no blog do Paulo Lopes:

    http://www.paulopes.com.br/2012/05/e-um-erro-atacar-ferozmente-religiao.html

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  2. ..."Que fique claro um detalhe: a religião não cria nem fornece uma fonte para os valores morais. Ela é, por natureza, um mecanismo de conservação. Por este motivo, ela precisa ser renovada pelos seus membros. Daí a grande importância do constante questionamento a ela."...

    - Caro Gustavo, não vi nenhum questionamento ao budismo !...

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    Respostas
    1. Os únicos questionamentos ao budismo que eu teria são questionamentos que eu faço às outras religiões. Não fiz grandes questionamentos porque não conheço o budismo ao ponto de saber pelo quê questioná-lo e, além disso, as diferentes seitas budistas já questionam umas às outras.

      De qualquer forma, se você tiver críticas ao budismo para apresentar, fique à vontade.

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    2. - O problema desse texto é que quem lê fica com a impressão de que você fez uma pequena propaganda do budismo. Concordo totalmente que a religião é indissociável da nossa formação cultural, mas ponha-se no lugar de alguém que esteja querendo questionar sua própria religião... ele pode pensar : ah, mas o texto é pró-budismo. Então o autor é budista ou simpatizante! Ele não tem propriedade para analisar religiões dessa maneira. E foi justamente a impressão que eu tive.
      O seu blog é muito legal. Fiquei chocado com a descoberta de que o rosto da Bernardete está coberto por uma máscara de cera. Cresci num ambiente impregnado de um catolicismo fanático, e todos sempre me diziam que aquele era o próprio rosto dela...
      Então, valeu pela atenção, pelo blog, e um abraço.

      Stefano

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